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Retrato da Rapariga em Chamas

de Céline Sciamma

perfeito

É possível ficar indiferente ao final de “Portrait de la jeune fille en feu”? Arrebatador, hipnótico, comovente, dotado de sentimento, romantismo e melancolia, o momento mencionado demonstra paradigmaticamente o poder de um close-up, a força da Sétima Arte e a capacidade que uma actriz tem para despertar uma miríade de emoções. Sentir esta cena em sala de cinema é algo inquestionavelmente intenso e emotivo. A nossa mente fica presa a tudo o que observamos e escutamos, a nossa alma aquece, o coração palpita descontroladamente e um arrepio apodera-se do nosso ser, qual culminar de uma experiência cinematográfica digna de todo o nosso envolvimento emocional. O passado ecoa pelo presente, as recordações acentuam as sensações, enquanto o terceiro movimento de “Verão”, de “As Quatro Estações” de Vivaldi, dialoga com as emoções e os sentimentos que perpassam por este episódio. Céline Sciamma é uma cineasta acima da média. Já o tinha comprovado em filmes como “Tomboy” e “Bande des filles”. No entanto, “Portrait de la jeune fille en feu” é outra loiça, pertence àquele patamar das obras-primas, daquelas fitas que permanecem na memória e deixam uma marca que fica agarrada ao nosso âmago. É filme dotado de enorme sensibilidade, onde os não ditos têm tanta ou mais relevância do que as palavras, os gestos são sentidos e os rostos têm poder para se expressar silenciosamente. Os diálogos também têm fulgor, com o argumento a ser um dos pontos fortes deste belo romance, sobretudo a partir do momento em que as protagonistas começam a demonstrar mais intimidade e a conhecer-se mutuamente.

Céline Sciamma exibe uma enorme precisão a  jogar com o ritmo da narrativa, a fazer com que tudo pareça acontecer de forma natural, enquanto nos envolve para o interior de um castelo situado na Bretanha, em finais do Século XVIII. O mar rodeia as proximidades desta habitação e atribui uma sensação quer de liberdade, quer de prisão a este local ao qual a pintora Marianne (Noémie Merlant) chega numa fase inicial do enredo. A artista é contratada para pintar o retrato de casamento de Héloïse (Adèle Haenel), uma jovem que acaba de sair do convento. Esta resiste ao seu destino de esposa ao recusar posar para a pintura que será oferecida ao futuro marido. Para ultrapassar esta resistência, a progenitora (Valeria Golino), uma condessa de origem italiana, apresenta a pintora como dama de companhia de Heloïse. Noémie Merlant imprime uma postura inicialmente estudiosa, observadora e prática à sua Marianne. A tonalidade vermelha escura de um dos vestidos que mais utiliza remete para o fogo que começa a despertar lentamente no interior do seu âmago, realça as sensações desta mulher e o seu romantismo. Merlant é capaz de expressar imenso através dos gestos e olhares, tal como Adèle Haenel. Esta insere uma faceta inicialmente misteriosa à sua Heloïse, uma jovem que gosta de ler e ouvir música, adepta das artes e da liberdade, que é praticamente obrigada a assumir o lugar da irmã como noiva de um milanês, após a morte misteriosa desta última.

Do argumento de excelência, da subtileza da realizadora e da química das intérpretes nasce algo de especial. Existe uma distância inicial de parte a parte. O ritmo do filme e os seus silêncios assim o realçam. A partir do momento em que os diálogos se acentuam, a verdade chega ao de cima e a convivência é mantida, começa a formar-se uma intimidade entre Heloïse e Marianne, entre o espectador e “Portrait de la jeune fille en feu”. Adèle Haenel e Noémie Merlant contam com dinâmicas extremamente convincentes, algo que eleva e muito as cenas que protagonizam. Observe-se o trecho em que trocam olhares, separadas pela fogueira, ao mesmo tempo em que um grupo de mulheres canta uma música que remete e muito para a sua condição. É um daqueles momentos mágicos, que nos levam do transe à euforia, do arrepio às lágrimas, enquanto a letra, os olhares, o calor emanado pelo fogo e a escuridão da noite contribuem para um episódio memorável. Diga-se que existe muito mérito dos envolvidos. Note-se como a música diegética e não diegética são conjugadas com precisão, ou a eficácia com que a luz de uma fogueira é aproveitada para exacerbar o romantismo e a intimidade. Diga-se que o uso eficaz da iluminação, seja ela natural, ou oriunda das velas ou da lareira, é regularmente essencial para adensar não só o aquecer de determinados acontecimentos, mas também a proximidade que se forma entre algumas figuras que pontuam o enredo.

Heloïse descobre o amor, tal como Marianne. Sabem que a relação está condenada ao fracasso, ao curto período em que estão juntas. A primeira está prometida a um italiano. Por sua vez, a pintora nada pode fazer para evitar esse destino. As convenções da sociedade não permitiriam tal romance, mas nem por isso conseguem estancar um fogo que emana das profundezas da alma. Céline Sciamma faz com que acreditemos nesses sentimentos, nessa paixão que floresce, nessas labaredas que sobem pelo corpo e derretem temporariamente as convenções. A cineasta dá tempo para cada gesto ganhar impacto, para cada plano respirar e tudo se desenrolar de forma credível. Os momentos iniciais são disso exemplo, quase a desafiar-nos, prontos a demonstrar o modo como as figuras que pontuam o enredo lidam com o tempo e o quotidiano. “Portrait de la jeune fille en feu” não poupa nos trechos que envolvem o convívio entre as mulheres, algo que permite desenvolver as dinâmicas destas e explanar os seus hábitos. Note-se quando encontramos Marianne, Heloïse e Sophie a jogarem às cartas, ou a lerem o mito de Orfeu e Eurídice. Importa ainda realçar a afabilidade que Luàna Bajrami imprime a Sophie, a criada da condessa, uma figura que mantém uma ligação de proximidade com as personagens interpretadas por Adèle Haenel e Noémie Mérlant.

O castelo onde este trio passa uma parte considerável do seu tempo é pontuado por largas dimensões e parcos habitantes, algo que acentua a solidão de Heloïse e a intimidade que se forma entre a dupla de protagonistas. As mulheres têm espaço para sobressair ao longo do filme, ou não estivéssemos perante uma obra com uma sensibilidade e uma perspectiva muito feminina. Céline Sciamma merece os mais variados elogios na abordagem deste romance dotado de uma enorme capacidade de despertar empatia. O final do Século XVIII é a época em que tudo decorre. Os cenários, o guarda-roupa e os gestos remetem para este período, mas os sentimentos são extremamente universais. O desejo, o florescer do primeiro verdadeiro amor, a amizade, as limitações impostas pelas convenções sociais, surgem como elementos transversais entre o ontem e o agora. No final somos contagiados por um plano fechado. Por um momento onde as divindades da Sétima Arte intervêm. Comovente, hipnótico, delicado e romântico, “Portrait de la jeune fille en feu” é daqueles filmes que se agarram ao nosso ser, que deixam uma marca impossível de apagar, uma marca apenas ao alcance das grandes obras.

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Summary

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
5 10 perfeito

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