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O Terceiro Assassinato

de Hirokazu Koreeda

muito bom

Se algumas obras realizadas por Hirokazu Koreeda despertam uma sensação de paz de espírito, tais como “Umimachi Diary” e “Umi yori mo mada fukaku”, já “Sandome no satsujin” (O Terceiro Assassinato) leva-nos ao limite da dúvida, levanta questões pertinentes sobre a justiça e o sistema legal e apresenta a habitual capacidade do cineasta para conceder atenção aos pormenores. Pelo meio existe espaço para o realizador abordar temáticas muito típicas das suas obras, sobretudo a envolverem as relações familiares e as especificidades do Japão, sempre com uma subtileza e uma humanidade assinaláveis. No centro de boa parte do enredo estão Misumi (Kôji Yakusho) e Shigemori (Masaharu Fukuyama). O primeiro assassinou o seu chefe, queimou o corpo do mesmo e confessou o crime junto das autoridades, sendo bastante provável que seja condenado à morte. O segundo é um advogado que é chamado para trabalhar na defesa do acusado, tendo inicialmente uma série de certezas sobre o seu cliente, embora estas comecem a desvanecer-se com o avançar do enredo. 

“Não é preciso entender um cliente para defendê-lo” diz Shigemori a Kawashima (Shinnosuke Mitsushima), o seu assistente, uma frase que remete para a ideia de que os advogados procuram acima de tudo criar uma estratégia legal que defenda os interesses dos seus clientes e estão pouco preocupados com a verdade, embora o protagonista encontre-se longe de conseguir manter esse distanciamento. Diga-se que um dos grandes méritos de “Sandome no satsujin” é exactamente a espessura que atribui aos dois protagonistas. O assassino aparece como uma figura dotada de dimensão e complexidade, que intriga, desperta curiosidade e conta com uma aparente afabilidade que contrasta com os actos hediondos que cometeu (já tinha cumprido pena por duplo assassinato), algo transmitido na perfeição por Kôji Yakusho. Este imprime sobriedade e uma aparente brandura a Misumi, um personagem incongruente, que nunca sabemos ao certo se está perturbado, ou a tentar jogar com os advogados, ou a esconder algo, com a sua atitude de confessar o crime de homicídio e furto a dificultar e muito a tarefa de Shigemori. Masaharu Fukuyama insere um estilo inicialmente despreocupado ao seu personagem, embora o advogado comece aos poucos a ser invadido por uma miríade de dúvidas, sobretudo quando começa a investigar o seu cliente e os acontecimentos que envolveram o crime.

A investigação conduz o protagonista a dialogar quer com a esposa (Yuki Saito) e a filha (Suzu Hirose) do falecido, quer com a senhoria do criminoso, ou a deslocar-se ao local do crime ou a Rumoi, o território onde vive o rebento do assassino, enquanto se envolve cada vez mais com o caso e depara-se com novas informações. O advogado tenta estabelecer uma estratégia legal minimamente sólida, embora comece gradualmente a interessar-se pela verdade e a formar uma estranha ligação com Misumi, indo ao ponto de parecer querer acreditar no cliente. Essa conexão é efectuada acima de tudo nos trechos que decorrem no interior da sala destinada às conversas entre clientes e advogados. A separá-los encontra-se um vidro, qual split-screen que exacerba a frieza e o distanciamento que perpassam por este cenário e sublinha as divergências e as aproximações entre estas duas figuras. Diga-se que os dois personagens começam paulatinamente a ser reunidos não só no interior dos planos, mas também a nível emocional, seja em situações de acalmia ou de maior tensão ou inquietação. Não são raros os momentos em que encontramos o reflexo de um personagem sobre a face do outro, quase como se os dois rostos se fundissem, com a arte de Mikiya Takimoto a contribuir e muito para exacerbar as dinâmicas intrincadas e turbulentas que se formam entre a dupla de protagonistas. Observe-se o plano em que os dois rostos se reúnem e as dúvidas permanecem, ou os planos fechados que realçam as emoções que percorrem a face dos dois indivíduos, nomeadamente, quando decidem largar a estratégia legal delineada pelo advogado. 

O trabalho de Mikya Takimoto na cinematografia destaca-se ainda pelo aproveitamento do contraste entre luz e sombras, inclusive quando deixa o sombreado dos estores ou das grades a simbolizar uma sensação de prisão ou clausura, um recurso que traz os filmes noir à memória. É notório que existiu um cuidado assinalável na composição dos planos, bem como a realçar alguns elementos que pontuam os cenários e contam com relevância no interior do enredo. Veja-se o plano filmado a partir de cima, em que uma encruzilhada é exposta no sentido literal e metafórico, ou o habitual destaque que Hirokazu Koreeda concede aos comboios, um símbolo de efemeridade, com a sua presença a envolver partidas ou chegadas (algo notório no prólogo, em que esse meio de transporte surge em pano de fundo durante um assassinato). Diga-se que o cineasta volta ainda a embrenhar-se com sucesso pelos meandros das relações e dinâmicas familiares, com as ausências a marcarem mais uma vez alguns dos seus personagens. Note-se as constantes ausências de Shigemori na vida da filha, uma adolescente, ou as dinâmicas entre Sakie (a filha do falecido) e a sua mãe, pontuadas por alguns silêncios que escondem segredos sombrios. Suzu Hirose sobressai pela forma contida como explana os sentimentos da sua personagem, uma adolescente que coxeia de uma perna e traz ao de cima alguns segredos escabrosos do seu progenitor. Veja-se a cena em que muito é revelado pela adolescente, com Hirokazu Koreeda a deixar a sublime banda sonora de Ludovico Einaudi temporariamente de lado, enquanto os planos começam a tornar-se cada vez mais fechados e permitem que os rostos dos intérpretes exprimam a delicadeza e o carácter melindroso da conversa que está a ter lugar. 

As músicas de Ludovico Einaudi são inseridas com enorme harmonia no interior do enredo, com Hirokazu Koreeda a saber quando a banda sonora ou os silêncios são necessários. Note-se o tom simultaneamente melancólico e misterioso da música que envolve uma visita de Shigemori e Kawashima ao local do crime, um espaço que conta com uma cruz, um ritual que é recorrente em Misumi, com a banda sonora e este sinal a contribuírem para exacerbar a inquietação em volta deste último. Por sua vez, a viagem do protagonista a Rumoi permite explorar uma memória que reúne sentimentos quentes e frios, com a neve a sobressair e a esfriar os corpos, embora as emoções continuem bem quentes, com o argumento a conseguir manter o nosso interesse pelos acontecimentos que antecedem a decisão final sobre o personagem interpretado por Kôji Yakusho. O argumento é o maior trunfo desta obra dotada de subtileza, algo notório no cuidado colocado para atribuir credibilidade aos procedimentos dos advogados, ou na qualidade assinalável dos diálogos. Esse trunfo é ainda visível na construção dos personagens, bem como na complexidade que é incutida na abordagem das temáticas, sejam estas relacionadas com a verdade, a pena de morte, ou o modo como a lei por vezes pode ser cega ou incapaz de fazer justiça.

Hirokazu Koreeda consegue incutir uma sensação de mistério em volta do assassino e das razões que o levaram a cometer o crime, enquanto desperta uma série de questões e estimula reflexão. O que é verdade ou mentira nas diversas declarações de Misumi? Como discernir quem deve ou não ser condenado à pena máxima? Quão espessa é a linha que separa o bem e o mal? Como definir a culpa ou inocência de alguém quando as provas nem sempre são suficientes ou escondem um contexto mais complexo? Será que o sistema legal japonês é justo? Qual é o direito que um ser humano tem de tirar a vida a outro? Estas são algumas perguntas que passam pela nossa mente ao longo do filme, com o argumento a estimular uma postura activa da nossa parte em relação àquilo que estamos a observar. Pelo caminho, “Sandome no satsujin” aborda ainda temáticas relacionadas com abusos sexuais sobre menores, exposta através de uma personagem que não podemos revelar, para além de exibir o conflito de gerações, um tema habitual das obras de Hirokazu Koreeda, sendo explanado a partir da relação entre Shigemori e o seu pai, um juiz reformado e reputado. Vale ainda a pena salientar o trabalho meritório efectuado no quesito da decoração dos cenários interiores ou da escolha destes espaços. Note-se a sala em que Misumi dialoga com os advogados, um espaço pontuado por tonalidades frias que adensam a impessoalidade deste local, ou a habitação do primeiro, um cenário que permite revelar mais alguns pormenores sobre o acusado. 

Outro dos cenários em destaque é o escritório de advocacia de Shigemori, um espaço que este divide com Settsu (Kôtarô Yoshida), Kawashima e Akiko (Izumi Matsuoka), onde o quarteto trabalha a defesa de Misumi e exibe alguma proximidade. Hirokazu Koreeda mescla assim elementos de filme de tribunal, investigação criminal, drama familiar e demonstra uma subtileza notável, bem como um enorme talento para expor as particularidades do Japão contemporâneo e apresentar-nos a personagens dotados de dimensão, com “Sandome no satsujin” a afastar-se um pouco dos seus últimos trabalhos e a exibir a sua versatilidade.

Review overview

Summary

"Sandome no satsujin" leva-nos ao limite da dúvida, levanta questões pertinentes sobre a justiça e o sistema legal e apresenta a habitual capacidade do cineasta para conceder atenção aos pormenores.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
4 10 muito bom

Comentários