Até onde pode ir a obsessão de um pai? Esta é uma pergunta que poderia praticamente servir como ponto de partida para “Il cratere”, a primeira longa-metragem de ficção realizada por Luca Bellino e Silvia Luzi, uma dupla que anteriormente trabalhara sobretudo em documentários. Diga-se que “Il cratere” esgueira-se precisamente pelas fronteiras do documentário e da ficção, tendo no seu cerne a obsessão de Rosario Caroccia para que Sharon, uma das suas filhas, consiga ser bem-sucedida no mundo da música. As dinâmicas entre ambos são marcadas por uma atmosfera muitas das vezes sufocante, com os desejos da jovem Sharon, uma adolescente, a raramente serem respeitados, embora pareça certo que Rosario ama a filha. O trabalho de Luca Bellino e Silvia Luzi na cinematografia adensa essa obsessão que rodeia a ligação deste pai com a sua filha, para além de contribuir para incutir algum verismo aos actos que marcam o quotidiano destes personagens. Note-se os planos maioritariamente fechados, quase sempre de longa duração, prontos a permitirem que os rostos dos intérpretes surjam como um mapa que nos conduz à alma dos personagens, ou os trechos em que ficamos diante de algumas destas figuras a efectuarem actos como lavar e escovar os peluches, algo que permite dar a conhecer um pouco do seu dia a dia.
A composição dos planos contribui ainda para exacerbar a atmosfera opressora que envolve Sharon e o seu quotidiano. Observe-se os planos em que esta aparece fora de foco ou fora de campo, enquanto o pai está em destaque, dois recursos que adensam a faceta controladora deste indivíduo, ou o momento em que ficamos diante do primeiro espectáculo da jovem na televisão, no qual a protagonista é inicialmente exposta a partir da câmara de filmar de Rosario. Esse sufoco é visível não só nos planos em que o destaque vai para o pai a observar a filha, mas também nos actos deste vendedor de peluches. Veja-se quando reprime a adolescente no estúdio devido a esta supostamente não ter treinado o suficiente, ou momento em que instala um serviço de vigilância no interior da habitação para controlar todos os passos da jovem. Esta conta com um talento vocal notório e gosta de cantar, embora nem sempre pareça claro que deseje prosseguir com uma carreira no mundo da música. Também ela uma cantora popular na vida real, Sharon Caroccia consegue colocar em evidência as dúvidas da sua personagem e incutir algum mistério a esta jovem que conserva no seu rosto uma multitude de sentimentos e uma inexperiência muito própria da idade.
O rosto da protagonista aparece imensas vezes em destaque, enquanto os seus imensos silêncios tornam-se cada vez mais sonoros. Sharon não parece estar preparada para carregar a responsabilidade de tirar a sua família da delicada situação financeira em que esta se encontra (os seus pais trabalham a vender peluches nas bancas das feiras ou nas ruas), ou de corresponder às exigências da entrada no meio musical profissional e da ambição do seu progenitor. Este encara a filha como a sua “mina de ouro”, apesar de também ser claro que a ama, ainda que estes argumentos não justifiquem de todo alguns dos seus actos. Co-argumentista e pai de Sharon na vida real, Rosario Caroccia transmite com sobriedade a obsessão do seu personagem, bem como o seu lado nem sempre polido, a sua simplicidade e a esperança que este tem na possibilidade da jovem poder tirá-lo de uma vida de privações e dificuldades. Nesse sentido, Rosario intromete-se em quase tudo o que envolve a filha, seja a exercer funções de empresário, a mexer nas letras das canções, a marcar a gravação das músicas, a tratar do cabelo da jovem e a treiná-la, enquanto tenta que esta seja bem sucedida.
O título do filme remete para uma constelação que tem na Alpha Crateris e na Delta Crateris duas das suas estrelas mais brilhantes. No caso de “Il cratere”, as estrelas que brilham mais alto são Rosario e Sharon Caroccia, com ambos a darem vida a personagens que guardam no seu interior a alma dos seus intérpretes. O elenco é maioritariamente composto por não profissionais, algo que em certa medida remete não só para a faceta de docuficção de “Il cratere” (os actores e actrizes interpretam versões de si próprios), mas também para as fundações neorealistas desta fita. Esses ecos são visíveis não só nas características do elenco, mas também dos personagens e da forma como o espaço que os rodeia é representado e aproveitado, com a dupla de realizadores a expor a realidade daqueles que parecem incapazes de fintar a pouca fortuna, sempre tendo os subúrbios de Nápoles como pano de fundo. Diga-se que os objectivos de Luca Bellino e Silvia Luzi são expostos de forma bem clara no início do filme ao colocarem Sharon a tentar decorar alguma informação sobre o verismo e o realismo. Fica notório o desejo de ambos de não julgarem os personagens e de observarem a alma destes elementos sem serem influenciados pelos seus próprios sentimentos, algo que efectuam com sucesso, enquanto deixam que fiquemos perante as rotinas, os rostos e os silêncios destas figuras.
A longa duração dos planos contribui não só para que sejamos compelidos a esquecer praticamente a presença da câmara, mas também para adensar uma certa ligação entre o espectador e estes personagens. É certo que a espaços parece faltar algum desenvolvimento no que diz respeito à relação da protagonista com a restante família, embora seja um pequeno tropeço numa obra que conta com alguns trechos emocionalmente intensos. Um desses momentos acontece quando encontramos Sharon a abandonar silenciosamente a banca de brinquedos, com a câmara a centrar todas as atenções no rosto da adolescente, enquanto este transmite confusão, impotência, tristeza, revolta e inquietação. Pouco depois, a protagonista avança gradualmente, sendo seguida atentamente pela câmara. É então que começa a soltar o cabelo e os sentimentos, enquanto a câmara gira incessantemente, a banda sonora adensa as emoções fortes que percorrem este trecho e a adolescente grita. Não ouvimos aquilo que esta diz, mas sentimos e de que maneira, ou não estivéssemos na presença de um filme que opta muitas das vezes pela subtileza. É um dos grandes momentos de “Il cratere”, uma obra em que quase tudo é acompanhado, observado e exposto num registo maioritariamente documental, sejam as dinâmicas intrincadas entre um pai e a sua filha, ou as especificidades deste território, com Luca Bellino e Silvia Luzi a terem uma estreia extremamente recomendável pelos meandros da ficção.
Observação: Filme visionado no âmbito da cobertura da décima primeira edição da Festa do Cinema Italiano. “Il cratere” encontra-se em exibição no ArteKino.
Review overview
Summary
"Il cratere" esgueira-se pelas fronteiras do documentário e da ficção, tendo no seu cerne a obsessão de Rosario Caroccia para que Sharon, uma das suas filhas, consiga ser bem-sucedida no mundo da música.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização