A depressão e os pensamentos suicidas andam regularmente lado a lado. Formam uma companhia difícil de travar, que ataca muitas das vezes quando menos se espera e pode provocar estragos irreparáveis. É algo complicado de enfrentar em qualquer idade. Na adolescência esta combinação explosiva chega acompanhada das inseguranças próprias da idade e das emoções fervilhantes que a espaços contribuem para tudo ser sentido de modo mais intenso. Junte-se à equação uma sensação de deslocamento constante e a dificuldade dessa pessoa em conviver consigo própria nos momentos de solidão e tudo pode ganhar um carácter mais perigoso. Essa situação é particularmente notória quando observamos os receios, desejos, angústias e anseios do protagonista de “Yonlu”. Simultaneamente sensível, angustiante, bela e poética, a primeira longa-metragem realizada por Hique Montanari capta a essência do personagem principal, o jovem Vinicius Gageiro Marques, mais conhecido como Yoñlu. Natural de Porto Alegre, fluente em cinco línguas, músico, ilustrador, participante em diversos fóruns online, Vinicius cometeu suicídio aos dezasseis anos de idade, um acto desesperado que provocou perplexidade e debate.
Nos momentos iniciais do filme, encontramos o terapeuta (Nélson Diniz) do protagonista a ser entrevistado por uma jornalista. Nélson Diniz incute credibilidade e sobriedade aos diálogos do seu personagem, enquanto este fala sobre os perigos dos fóruns online, a sua relação com o paciente e expõe algumas das especificidades do caso do mesmo, tendo em vista a alertar a opinião pública e a gerar debate sobre o tema. Estes trechos contribuem e muito para atribuir uma faceta positivamente pedagógica ao filme e expor alguns dos elementos que conduziram o protagonista a cometer este acto. Observe-se a posição contundente do psicólogo contra o fórum frequentado por pessoas potencialmente suicidas, um espaço do qual Yoñlu fazia parte e de onde tirou ideias e recebeu uma parte do gatilho para avançar para a morte. A partir daqui, Hique Montanari apresenta-nos o personagem do título em toda a sua complexidade. Para essa tarefa recorre não só a um argumento de grande nível e a uma interpretação sublime de Thalles Cabral, mas também a uma mistura de linguagens. Não faltam trechos de animação, linguagem de videoclipe e elementos musicais, com esta reunião a remeter para as diferentes facetas deste jovem e para a sua criatividade. Diga-se que as músicas, boa parte dos desenhos e algumas falas de Yoñlu são da autoria do jovem e introduzidas de modo harmonioso e preciso no interior do enredo.
A dar vida e sentimento a estas falas encontra-se Thalles Cabral. No seu olhar observamos as angústias, dúvidas, receios e fugazes entusiasmos de Yoñlu, enquanto no seu tom de voz encontramos estas emoções e estados de espírito a materializarem-se em palavras que têm o condão de soarem extremamente verdadeiras. “A risada da Luana resultou como uma morfina instantânea para algumas das minhas angustias. De facto, o dia foi mesmo vitorioso. Enquanto eu ia para casa considerando tudo o que tinha acontecido, eu pensei, eu pensei em estar chegando no começo do fim do meu tormento (…)” comenta o protagonista junto do terapeuta enquanto recorda o momento em que conseguiu fazer rir a colega (Lorena Lorenzo). Thalles Cabral consegue que tenhamos a percepção do entusiasmo melancólico do seu personagem, com o seu rosto a transmitir essa dificuldade do protagonista em dobrar este Cabo das Tormentas. O momento em questão é filmado em preto e branco, quase como se fosse um sonho que se apodera da realidade do adolescente, sendo acompanhado da suave canção “Estrela” e do sensível trabalho de Juarez Pavelak na cinematografia.
Se a direcção de fotografia contribui para esse diálogo entre a alegria temporária e a melancolia no trecho anteriormente mencionado, já nas cenas em que Vinicius contacta com os outros membros do fórum o caso é distinto. Pontuado por tons verdes que estão longe de trazerem esperança, falas saídas de utilizadores desse site e uma atmosfera perturbadora (recheada de vozes e sons que sublinham a inquietação e o perigo), os trechos que decorrem no seio deste espaço online reflectem a impessoalidade e o anonimato que envolvem alguns dos diálogos trocados nestes lugares e os perigos que o mau uso dos mesmos podem trazer. Note-se quando ficamos com os utilizadores com a cara tapada pelos desenhos de Yoñlu, ou o momento em que começam a exibir as suas faces e uma postura mais verdadeira. Hique Montanari está longe de tratar o suicídio ou a depressão como algo leve. O cineasta aborda ambos com uma complexidade assinalável. Não existe beleza, ou libertação. Existem dúvidas, muita dor e sofrimento a rodear os comportamentos do protagonista, sobretudo pela vontade deste em ultrapassar a doença acabar muitas das vezes por embater numa barreira que se revela demasiado íngreme para ser escalada.
Yoñlu tem na escrita, na música e no desenho algumas formas de se expressar, embora a sua arte nem sempre lhe traga conforto. No entanto, revela e muito diversos traços da sua personalidade, seja a sua dificuldade em comunicar, a sensação de deslocamento, o desprezo para com a tradução “criativa” dos títulos dos filmes, o medo dos relógios ou a pouca simpatia para com a moda. As falas de Yoñlu em voiceover permitem aumentar o nosso conhecimento sobre este e acentuar a ligação entre o espectador e o personagem, enquanto as suas músicas são inseridas na narrativa de modo a dialogarem e muito com os acontecimentos que decorrem no interior do enredo. Note-se o caso da Suicide Song, uma canção que nos enche de tristeza e exprime paradigmaticamente o estado de espírito do adolescente durante um momento de crise. “Veja, estou triste porque estou sozinho no Mundo…” diz num dos versos, ao mesmo tempo em que exprime a sua solidão e a sua dificuldade em lidar com o espaço que o rodeia. Essa solitude é adensada pelo trabalho de Hique Montanari e da sua equipa. Note-se os planos em que encontramos o personagem principal sozinho no interior da sala de aula, embora consigamos ouvir os seus colegas, um momento entre o sonho e a realidade que exacerba o quanto este se sente só no interior das multidões. Vale ainda a pena realçar a utilização das grande angulares em diversas ocasiões em que o protagonista circula por Porto Alegre, uma opção que permite sublinhar a confusão, as tormentas e a sensação de distanciamento do jovem no que diz respeito a este espaço.
O lugar onde Vinicius demonstra estar mais à vontade é no seu quarto. É aqui onde cria a sua arte e se digladia com as suas tormentas interiores, enquanto tem na internet um ponto de contacto com a vida e a morte. A decoração deste espaço demonstra que existiu todo um apurado trabalho a nível da direcção de arte. Note-se a presença dos instrumentos musicais, de material de pintura, livros, o Submarino Amarelo dos The Beatles, entre outros pertences que contribuem para dar a conhecer um pouco da personalidade do local e daquele que o habita. Diga-se que a câmara encontra-se quase sempre centrada em Yoñlu, seja em movimentos esvoaçantes a trazerem à memória as colaborações de Terrence Malick com Emmanuel Lubezki ou a focar sobriamente o jovem nos seus momentos de solidão. A espaços encontramos o protagonista com o médico, ou com os pais, um casal que exibe uma preocupação notória com o rebento, embora os esforços destes elementos para desviar o adolescente da depressão e da rota do suicídio revelem-se muitas das vezes infrutíferos.
Em algumas parcas ocasiões somos acometidos por uma vontade enorme de travar os personagens dos filmes e impedir que cometam determinadas acções. É raro de acontecer, mas Hique Montanari consegue despertar esse sentimento nas nossas pessoas a partir do momento em que coloca a figura do título a revelar os seus planos. Esse desejo nasce sobretudo devido à capacidade do cineasta em conseguir que percebamos Yoñlu e percepcionemos as suas dores, dúvidas, angústias, solidão e ansiedades, ao mesmo tempo em que ficamos diante da criatividade do adolescente e da sua dificuldade em lidar com a depressão. Em diversos pontos de “Yonlu” é possível observarmos o protagonista com roupas de astronauta enquanto caminha aparentemente sem direcção, algo que realça a sua solidão e remete quer para a sua inventividade, quer para a propensão da película em envolver-se por situações que permanecem num limbo entre o sonho e a realidade. Ao fazer uso dessa criatividade para abordar uma parte da história de Vinicius Gageiro Marques, o realizador Hique Montanari consegue não só respeitar a essência da figura que retrata, mas também criar um filme de pendor biográfico que foge regularmente aos lugares-comuns e sobressai pela sua capacidade de conjugar as diferentes linguagens e de expor a complexidade da depressão e dos impulsos suicidas.
Review overview
Summary
O realizador Hique Montanari consegue não só respeitar a essência da figura que retrata, mas também criar um filme de pendor biográfico que foge regularmente aos lugares-comuns e sobressai pela sua capacidade de conjugar as diferentes linguagens e de expor a complexidade da depressão e dos impulsos suicidas.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização