Share, , Google Plus, Pinterest,

Print

Posted in:

Vidas Duplas

de Olivier Assayas

muito bom

A literatura, o mercado editorial, as relações amorosas e de amizade estão no centro de “Doubles vies”, um filme que gosta de levantar questões, de deixar as respostas em aberto, de possibilitar que a palavra seja valorizada e de permitir que os intérpretes façam uso dessa faceta palavrosa do argumento. Visões distintas e semelhantes entram em diálogo, sejam estas sobre o futuro do mercado editorial ou relacionadas com as razões para as pessoas investirem ou não dinheiro em obras literárias. É legítimo dizer que os livros são caros quando gastamos um valor absurdo em telemóveis ou computadores dos quais não utilizamos nem metade das suas potencialidades? Será que os livros deveriam ser mais caros para serem devidamente valorizados? Os eBooks e os audiobooks são o futuro do mercado ou uma tendência incapaz de destronar a obra física? É ético que um escritor utilize informação melindrosa relacionada com aqueles que o rodeiam como conteúdo para as suas histórias? Qual o valor literário de um tweet ou de uma mensagem enviada por e-mail? Estas são algumas das questões levantadas e debatidas ao longo desta longa-metragem realizada por Olivier Assayas. A espaços fica a ideia de que o cineasta poderia e deveria ter aproveitado para deixar o filme respirar, que é como quem diz, permitir que os diálogos ganhassem impacto através de um ou outro momento de silêncio ou contemplação. Esses períodos de acalmia do verbo raramente acontecem, mas nem por isso a palavra deixa de ter força, com esta a ter no elenco um enorme aliado.

Guillaume Canet transmite com precisão as incertezas do seu Alain em relação ao futuro do mercado editorial. Líder da Editions Verteuil, uma editora com um passado de respeito, este exibe por diversas vezes alguma vontade em acompanhar a mudança dos tempos, em apostar no digital. É alguém que gosta de manter longos diálogos sobre o assunto, que exibe um certo cuidado na escolha das obras que integram o espólio da sua editora, ainda que nunca deixe de lado a vertente comercial. O intérprete imprime carisma, charme e uma capacidade assinalável de ser evasivo a este editor que é casado com Selena (Juliette Binoche), uma actriz que protagoniza uma série televisiva de grande popularidade. Juliette Binoche incute uma postura deliciosamente pedante e acutilante à sua personagem, uma intérprete apreciadora de literatura, pouco dada a eBooks e tecnologias, incapaz de esconder a sua opinião ou de evitar comentários desagradáveis. No entanto, está longe de conseguir expor totalmente os seus sentimentos. Sabe que o esposo a trai, mas não exibe esse conhecimento junto do cônjuge. Diga-se que ela também o trai, com “Doubles vies” a fazer justiça ao título ao colocar-nos diante de relações onde a lealdade não é o ponto forte, nas quais quase tudo e todos sabem que algo não está a correr bem nos seus envolvimentos oficiais.

Se Alain tem um caso com Laure (Christa Théret), recém-contratada para liderar a revolução tecnológica da Editions Verteuil, já Selena encontra-se envolvida com Léonard, um escritor que conta com uma enorme propensão para estar no centro de confusões. Com o cabelo regularmente despenteado, barba por fazer, um guarda-roupa que realça o seu desmazelo para com as convenções, o artista tem em Vincent Macaigne um intérprete capaz de transmitir esse desapego da personagem para com a sociedade que a rodeia. Vive as relações de modo muito próprio, é incapaz de escrever algo não seja inspirado na sua vida privada ou nos seus casos amorosos, muitas das vezes quase roça a objectificação da mulher e o obsceno, qual Bukowski de trazer por casa. Léonard é casado com Valérie (Nora Hamzawi), a consultora de um político, uma mulher sagaz que desconfia de uma possível traição. Nora Hamzawi cumpre neste papel, um pouco à imagem de Christa Théret. Esta consegue realçar a faceta ambiciosa e arrojada da sua Laure, uma profissional que contém no seu âmago uma pontinha de romantismo em relação ao mercado editorial. As divagações sobre as personagens e algumas das especificidades que os intérpretes incutiram nas mesmas já vão longas, mas são necessárias. Talvez não seja totalmente imprescindível, embora nasça de uma procura de reforçar o quanto Olivier Assayas deu prioridade à interacção entre estes elementos, ao desenvolvimento dos protagonistas e aos diálogos.

Esta atenção do realizador e argumentista para com as personagens e as suas falas nem sempre é sinónimo de que foi a fundo a em tudo aquilo que se propõe abordar, ainda que raramente permaneça pela superfície. Muito é deixado implícito, algo que se torna numa das forças do argumento. Note-se o modo evasivo como Alain responde a Léonard sobre o manuscrito que este enviou, tendo em vista a dar a entender que rejeitou a obra. O editor e o escritor mantêm não só uma ligação laboral de longa data, mas também uma relação de amizade, algo que não impede a existência de uma série de segredos e de discordâncias entre ambos. Léonard é avesso a mudanças, algo que não acontece com Alain. Este não gosta do modo como o escritor objectifica uma mulher no interior do seu novo livro, algo que levanta a questão sobre o quanto conseguimos abstrair-nos ou não dos nossos valores para apreciar uma obra de arte. Será possível apreciar totalmente um manifestação artística que contém conteúdo problemático? É mais uma das perguntas levantadas por “Doubles vies”, uma fita que nos coloca diante das frustrações, desejos, paixões, ódios e desafios profissionais destas personagens cujas vidas se encontram num impasse.

Alain quer revolucionar a sua editora, mas não parece totalmente convencido em relação a abandonar o formato físico dos livros. Léonard tem de lidar com a animosidade crescente dos leitores e da imprensa. Selena não quer continuar a protagonizar a série policial, embora esteja relutante em rejeitar a proposta de fazer parte do elenco em mais uma temporada. A relação entre a actriz e o editor é marcada por algum equilíbrio, com o desejo a raramente vir ao de cima das águas paradas da rotina, um pouco à imagem daquilo que acontece com o matrimónio de Léonard e Valérie. Os livros fazem parte do quotidiano de uma parte considerável destas figuras, seja no trabalho, ou nas suas habitações, algo reforçado pelos cenários que muito dizem sobre estes homens e mulheres. As mudanças no modo como os livros são lidos e o formato em que são adquiridos surgem como alguns dos assuntos centrais do filme, bem como o declínio da relevância da imprensa escrita, a forma como o público encara as obras e a faceta intrincada das relações humanas. Olivier Assayas controla tudo de forma maioritariamente segura, sem chamar para si as atenções, ao mesmo tempo em que aproveita o talento e o carisma do elenco que tem à disposição para deixar o argumento sobressair.

Review overview

Summary

Olivier Assayas controla tudo de forma maioritariamente segura, sem chamar para si as atenções, ao mesmo tempo em que aproveita o talento e o carisma do elenco que tem à disposição para deixar o argumento sobressair.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
4 10 muito bom

Comentários