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Vazante

de Daniela Thomas

muito bom

“Vazante” surge como uma cápsula do tempo que chega de 1821 para provocar um efeito intenso e marcante nos dias de hoje. Os sons, as roupas, os gestos, a iluminação, os diálogos e as dinâmicas dos personagens remetem exactamente para o período, o contexto e o espaço em que somos colocados, nomeadamente, em 1821, em Minas, na Serra Diamantina. São elementos que permitem exibir o cuidado da realizadora Daniela Thomas e da sua equipa em recriarem a época representada, enquanto transportam o espectador para o interior de uma fazenda e das especificidades do quotidiano nas imediações desta propriedade. É um espaço exposto em toda a sua imponência e dimensão, onde o romantismo está muitas das vezes ausente, a escravatura é uma realidade e as relações reflectem os traços vincados de uma sociedade esclavagista e dotada de desigualdades. Essas assimetrias são visíveis entre o branco e o negro, o homem e a mulher, o negro e o negro, com o poder a ser um elemento central nas relações que são apresentadas, algo que em certa medida dialoga com o presente.

Não quer isto dizer que Daniela Thomas force o diálogo entre o passado e o presente, ou procure julgar os seus personagens. A cineasta prefere antes confrontar o espectador com os temas de outrora e a História. É um confronto doloroso, que coloca a nu o passado esclavagista do Brasil e de Portugal, bem como o racismo, a misoginia, a pedofilia, entre outros actos que poderiam ser encarados com normalidade na época, embora sejam imorais e ilegais nos dias de hoje. Diga-se que essa banalidade com que a violência e o racismo são encarados permite realçar e muito a crueza que permeia o quotidiano dos personagens de “Vazante” ao mesmo tempo que contribui para ir às raízes de problemas que continuam a afectar a nossa sociedade. Note-se o caso da utilização do poder como um meio de dominar o outro, algo exposto regularmente ao longo do filme, sobretudo a partir da figura de António (Adriano Carvalho), o dono da fazenda. Adriano Carvalho consegue expressar a faceta algo rude, fria e solitária do seu personagem, um indivíduo de nacionalidade portuguesa, pouco polido, que gosta de andar descalço e fica viúvo no início do filme, com o actor a ter um desempenho meritório.

É exactamente nos momentos iniciais do filme que encontramos António a regressar a casa acompanhado por uma série de escravos negros oriundos de África, um momento dotado de aspereza e crueza, que provoca um forte impacto. A chuva percorre o cenário, os pés descalços afundam-se pela lama, enquanto os escravos caminham vagarosamente e algemados, praticamente desprovidos de roupa e dignidade. Entre estes escravos encontra-se um indivíduo que é descrito como Líder, interpretado com uma intensidade notável por Toumany Kouyaté. No seu rosto encontramos a revolta e a raiva de ser transportado como gado para um país desconhecido, onde poucos percebem a sua língua e menos ainda respeitam a sua dignidade. Diga-se que Toumany Kouyaté conta com um dos personagens mais interessantes do filme, com a sua resiliência e a sua luta para “não quebrar” a deixarem marca e a sublinharem a violência cometida sobre estes homens e mulheres. 

O facto de nunca sabermos o nome do personagem interpretado por Toumany Kouyaté sublinha a forma desumana como os escravos eram tratados, quase como se fossem despidos de identidade. O que nos conduz nesta fase do texto ao funcionamento desta fazenda dedicada ao negócio de gado e escravos. Na fazenda encontramos uma série de escravos negros, alguns deles nativos, que também estão longe de serem ouvidos ou tratados com dignidade. Note-se o caso de Feliciana, interpretada com grande precisão por Jai Baptista, uma estreante nas lides cinematográficas. Feliciana é uma escrava que é constantemente alvo de violência sexual por parte de António. O silêncio com que encara estes actos é devastador, tal como é arrasador termos a percepção de que esta e Virgílio (Vinicius Dos Anjos), o seu filho, lidam com os acontecimentos com uma resignação muito própria de quem aprendeu a conviver com a violência de quem tem poder. É devastador observar a brutalidade que pontua estas relações, bem como a forma desumana como os escravos e as mulheres são tratados e silenciados, com Daniela Thomas a retratar uma realidade incómoda e dolorosa.

Esse silenciamento é ainda visível quando encontramos Joana (Geisa Costa), uma das criadas da confiança de António, a salientar que a esposa deste morreu a dar à luz. Esta não dirige o olhar ou a palavra ao fazendeiro, mas sim a Manuel (Alexandre De Sena), um dos negros que encontramos inicialmente a coordenar os escravos. Esse desviar do olhar é mais um elemento que permite explanar essa distinção social e a forma como estes valores perniciosos que reforçam as desigualdades estavam inculcados no interior da sociedade deste período. Entre os negros existe um ou outro elemento com um pouco mais de poder. Veja-se o caso de Jeremias (Fabrício Boliveira), o responsável por colocar os outros escravos em “ordem”, embora o seu poder seja meramente ilusório e contribua para manter o status quo. A presença de António é sentida na fazenda. Este vive com Dona Zizinha (Juliana Carneiro Da Cunha), a sua sogra, uma mulher que se encontra num estado mentalmente delicado, praticamente demente, que surge como uma figura observadora das rotinas desta casa e representa uma sociedade em decadência. 

O quotidiano de António divide-se entre a fazenda e as viagens para negociar escravos e gado, algo que praticamente não se altera a partir do momento em que casa com Beatriz (Luana Nastas), a sua sobrinha, uma pré-adolescente. A naturalidade com que a maioria dos personagens encara o casamento entre António e Beatriz remete para a mentalidade da época. No entanto, ao exibir este matrimónio que une um adulto e uma menor, aprovado pela Igreja e o Estado, a realizadora Daniela Thomas expõe o quão problemáticas são as fundações de países como o Brasil e Portugal e de instituições como a Igreja Católica. A cineasta opta quase sempre por explanar estes acontecimentos com uma postura distanciada, sem tomar partido ou efectuar críticas directas, enquanto estimula o espectador a observar com um olhar crítico e atento àquilo que se desenrola ao longo de “Vazante”. Tudo é exposto sem recurso a histrionismos, ou a situações excessivamente melodramáticas, com essa abordagem crua a inserir umas doses valentes de veracidade e objectividade a esta pungente obra cinematográfica. 

Adriano Carvalho e Luana Nastas conseguem colocar em evidência o distanciamento que existe entre os personagens que interpretam, com a união entre ambos a não desfazer a sensação de que são figuras extremamente solitárias. A solidão de António remete mais uma vez para a conduta da época, com este a tratar os escravos, os negros e as mulheres como figuras que não estão ao seu nível. No caso de Beatriz, esta é uma jovem na casa dos doze ou treze anos que subitamente sai de casa dos seus pais e da sua irmã (Isadora Favero) e lida com uma realidade completamente distinta. Esta conta com uma relação de proximidade com Bartholomeu (Roberto Audio) o seu pai, para além de respeitar Ondina (Sandra Corveloni), a sua mãe, uma figura protectora que tenta defender os interesses da sua família, ainda que dentro das suas limitações. Essa separação dos pais, a solidão e a curiosidade conduzem Beatriz a aparecer como uma força disruptiva que começa a envolver-se às escondidas pelo interior da comunidade de escravos, tendo muitas das vezes a companhia de Virgílio, com quem protagoniza alguns dos momentos mais ternos do filme, embora a proximidade que se forma entre ambos seja uma garantia de problemas para os dois personagens. 

A química entre Luana Nastas e Vinicius dos Anjos é notória, com ambos a conseguirem ultrapassar os silêncios a que os seus personagens estão obrigados com recurso aos olhares que muito expressam. O silêncio da personagem interpretada por Luana Nastas sublinha o papel secundário da mulher no interior desta sociedade patriarcal, bem como o pouco à vontade que a jovem tem com o esposo e a nova realidade que a rodeia. As mulheres estão numa posição secundária e delicada nesta sociedade de 1821, algo que é exposto com uma eficácia notória ao longo do filme, seja através das acções destas figuras (as mulheres a não poderem estar à mesa na presença de convidados, ou sem autorização do patriarca ou proprietário da casa), ou dos olhares trocados pelos personagens, ou pela forma como os planos são compostos. Note-se uma refeição que decorre na casa dos pais de Beatriz, com a jovem a encontrar-se no chão, posicionada praticamente ao nível dos pés de António. 

O trabalho de Inti Briones na cinematografia é um primor, pronto a aproveitar a luz natural ou das velas (não é utilizada luz eléctrica), a explorar os tons de cinza e a intemporalidade do preto e branco com que “Vazante” é filmado, a extrair as características opressoras do espaço da senzala e a violência emocional que percorre o quotidiano destes personagens. Por vezes fica a sensação de que tudo é filmado com demasiado brio e de forma excessivamente limpa para uma obra que expõe uma realidade tão dura, mas também não deixa de ser notório que observar o cuidado colocado na composição dos planos é um deleite para o olhar. O cuidado colocado na decoração dos espaços interiores da propriedade de António também é praticamente inegável, com o trabalho neste quesito a sublinhar o estilo de vida deste personagem e a frieza e a solidão que permeiam este cenário. Por sua vez, o aprumo no guarda-roupa reforça a representação da época e o estatuto social de cada elemento, enquanto o trabalho sublime a nível de design de som contribui para transmitir os sons que permeiam o quotidiano destes personagens, quase como se estivéssemos na época em que estes vivem. Na sua estreia a solo na realização de longas-metragens, Daniela Thomas brinda-nos com uma potente cápsula do tempo que se envolve pelas areias da História e confronta-nos com as fundações problemáticas da nossa sociedade.

Review overview

Summary

Uma potente cápsula do tempo que se envolve pelas areias da História e confronta-nos com as fundações problemáticas da nossa sociedade.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
4 10 muito bom

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