Já é um cliché dizer que um novo filme de Martin Scorsese é o seu melhor em muitos anos. Tal como é já mais que sabido que os detratores do trabalho do cineasta neste terceiro milénio são inúmeros – isto porque Scorsese tem-se desdobrado em longas-metragens muito distintas entre si, algumas com os seus temas e ideias de sempre (O Lobo de Wall Street e Silêncio, por exemplo), e outras que tanto podiam ter sido assinadas pelo autor de Taxi Driver como por qualquer tarefeiro experiente e mais, ou menos, eficaz – Gangues de Nova Iorque ou A Invenção de Hugo foram concebidos mais pelos valores de produção ou a quinquilharia visual envolvida, experiências para encher o olho e não a “alma” do espectador.
E é óbvio que a simples junção de Scorsese com os seus colegas de longa data Robert de Niro e Joe Pesci (Harvey Keitel também surge no elenco, mas numa presença muito mais discreta) e Al Pacino, que nunca trabalhara antes com o cineasta, é algo que cria uma enorme expectativa antecipada. A produção deste filme, envolvido numa autêntica telenovela de bastidores, esteve por isso nos holofotes da comunicação social de forma constante nos últimos anos. Acompanhámos a par e passo toda a ”intriga“ do making-of de O Irlandês, pontuada por sucessivos adiamentos, o aparentemente estabelecido acordo para iniciar rodagem após o término de Silêncio, quebrado pelo grande fracasso comercial desse filme, e por fim, a salvação pela Netflix, que agora o lança em todos os computadores, tablets e telemóveis do planeta, depois de algumas semanas em exibição em salas de vários países.
Por esta altura, já muito (talvez demasiado) se disse e escreveu sobre O Irlandês, e assim, é ardua a tarefa de discorrer sobre um filme já tantas vezes dissecado por críticos, opinadores de vária índole e a já costumeira malta das redes sociais com muito tempo livre. Ao falar do tema badalado do momento, corre-se o óbvio risco de repetir ideias já estabelecidas. Comecemos pelo sumário de intenções, para quem não tem paciência para textos longos, para quem os livros só podem ter bonecos ou uma letra em tamanho 18: sim, os velhotes estão todos muito bem (e não esquecer o outro velhote, que fez a banda sonora, o senhor Robbie Robertson); sim, é tudo muito bonito, o Scorsese do costume mas com um lado melancólico ausente dos seus outros filmes criminais; e sim, os efeitos visuais podem ser tão impressionantes como olhar olhar para a cara da senhora que fez a cirurgia plástica no Brazil.
Agora, desenvolvendo, e lê quem quiser: ninguém duvida que este é um épico criminal com a assinatura inconfundível de Scorsese (nos diálogos, no uso da violência, na interacção entre personagens, no humor imprevisível e na ligação entre o quotidiano e a religião), mas O Irlandês tem algo mais do que os outros filmes do realizador sobre o mundo do crime organizado. Frank Sheeran (de Niro) é uma personagem mais ambígua e impenetrável do que Henry Hill, o protagonista de Tudo Bons Rapazes que constatava, logo nos minutos iniciais, que desde que tem memória que queria ser um gangster. É um homem que alimentou a sua vida de traumas desde tenra idade, por ter combatido na II Guerra Mundial e ter lá testemunhado e participado em alguns actos pavorosos. Nunca Scorsese nos diz que isto é uma desculpa para os actos da personagem, mas para a aparente frieza do seu contacto com o mundo e os seus pares. É apenas uma maneira de perceber toda a impassividade que o vai caracterizar no resto do filme. Aqueles olhos verdes, afinal, podem não ser apenas um truque digital sem sentido para preencher, a passos de forma muito desconfortável para quem vê, a cara de de Niro – podem querer também dizer algo sobre a personalidade de Sheeran.
É que O Irlandês, como referi, utiliza alguma violência. Mas não da maneira que nos habituámos a ver em Scorsese, estilizada, exacerbada e, em momentos, “espectacularizada” para se tornar parte de uma “diversão” maior e irrepreensível. Parte da piada de Tudo Bons Rapazes está no facto de testemunharmos o lado sanguinário das personagens e as suas implicações na vida real: com o passar dos anos, a cena em que todos jantam em casa da mãe da personagem de Joe Pesci tornou-se antológica. Todos sabemos porque é que ele quer a faca emprestada, mas a desculpa dada à progenitora para tal pedido é a demonstração do lado quase de “auto-paródia”, com um pé no “sonho” do mundo do crime e outro nas consequências legais dessa vida, que caracteriza esse filme, bem como Casino e O Lobo de Wall Street. Os protagonistas dessa “trilogia” improvisada são crianças grandes que fazem do poder o seu brinquedo favorito.
A violência deste épico que aborda as lutas sindicais de Hoffa e alguns episódios das últimas décadas da história dos states reside numa secura que não vimos nesse tríptico, e que fica numa ténue linha que se divide entre esses épicos e outros, de pendor mais religioso e contido, com que Scorsese nos foi presenteando ao longo da sua carreira: como o anterior (e, acredito, mal compreendido) Silêncio, o praticamente esquecido Kundun e o mais emblemático A Última Tentação de Cristo. A violência de O Irlandês não é mais um elemento de um menu-cocktail explosivo à Scorsese, mas a prova de um cineasta que quer continuar a explorar o tema da finitude e da redenção noutras dimensões, em terras de “malandros” com registos criminais maiores do que os de todas as almas que aguardam a vez para obterem uma sentença do purgatório. Quando Sheeran mata alguém, sentimo-lo como um momento seco e frio do filme. E a partir de um ponto fulcral da história, há um assassínio que marcará o restante tom do filme, que fica mais humano, mais solene, e mais frio. É como se, com essa morte, também Sheeran deixou morrer o pouco que acalentava a sua personalidade impassiva, e que no fundo, estava carregada de uma certa inocência e ingenuidade. No fim, procura a salvação, que nunca vai chegar. Mas perdoai-o, Senhor, porque ele não sabe o que faz. O seu mundo nunca oi mais nada a não ser a morte.
O Irlandês é portanto um filme sobre a morte através do ponto de vista de um homem que trabalhou na “área” com afinco, agradando ao seu patrão (Pesci) quando necessário, mesmo que isso lhe custasse amizades, familiares, e a sua própria noção de realidade – sim, a ponte com o Era Uma Vez na América de Leone e a sua odisseia pelos delírios de outro criminoso (também de Niro) faz todo o sentido. E creio ser já do senso comum que esta é a história de um homem (entre outros) que diz ter assassinado Hoffa. E é com essa informação, e com toda a extraordinária história de vida de Sheeran, que Scorsese realiza um melancólico olhar sobre a busca do perdão quando não há solução alguma para alterar o passado. Com isso, vemos o trio de actores principais a destacar-se como não tinham conseguido nos últimos anos: Pacino faz mais do que o “alter ego em overacting” que parece ser o seu apanágio já habitual; Pesci regressa, depois de uma longa ausência, para nos mostrar como fez tanta falta ao cinema americano (e como continua um actor dos diabos); e de Niro revela-se perante nós com uma fragilidade e uma sensibilidade que não acreditávamos ser possível, hoje, para aquele que, em tempos, foi um dos actores mais surpreendentes do cinema. Não há nada na sua prestação que nos leve para os caminhos habituais – e mesmo quando pensamos estar a ver algo familiar, levaremos com algo, um detalhe, uma linha de diálogo, uma expressão do seu rosto marcado pela derrota perante a própria vida, que contrariará as nossas suspeitas emocionais.
Tudo isto faz de O Irlandês um dos mais belos e complexos filmes de Scorsese. Sim, parece que é só uma frase bonita de crítico viciado em aparecer em capas de DVD ou em posts de instagram das distribuidoras, mas é dito com sinceridade. Por mais ou menos que os estimados leitores sejam apreciadores da obra do cineasta, é impossível não encontrar aqui, pelo menos, uma surpresa no que à questão formal e sensorial diz respeito.
Quanto aos efeitos visuais, longe de serem perfeitos (principalmente notórios em Pesci), pensemos apenas que, se durante décadas tolerámos (e continuamos a tolerar, pelo bem da suspensão da descrença), as decisões de maquilhagem mais inusitadas e preguiçosas, porque não dar um desconto ao aparato digital que, para muitos, parece ser a única coisa que importa neste filme? É que se deixarem de pensar nisso, encontrarão muitas outras camadas interessantes por explorar.
Poderia terminar aqui, se não me sentisse obrigado a fazer a seguinte nota: infelizmente, Portugal não foi um dos “contemplados” com a hipótese de ver O Irlandês no grande ecrã. A única sessão em sala do filme no nosso país, até ao momento, destinou-se à imprensa. Curioso que, sendo este o projeto cinematográfico mais badalado da Netflix, tenha obtido “honras” menores do que a outros títulos com um centésimo do seu interesse e potencial comercial. Se há filme da plataforma de streaming que precisa de ser visto em sala é este (esqueçam os delírios que têm povoado os media, como a ideia ridícula de ver o filme como se fosse uma minissérie). Esperemos que, em casa, cada espectador consiga, pelo menos, ter um pouco dessa experiência nos seus lares – sabendo que, obviamente, ver um filme no ambiente doméstico tem condicionantes que não existem numa sala de cinema. Nela, somos levados a entrar no filme, coisa difícil de fazer na nossa sala de estar, entre todos os focos de distracção do espaço em que habitamos. O Irlandês merece ser visto como deve ser: bem mastigado e absorvido, afastado da voracidade da vida clickbaitada e estupidamente atarefada em que vivemos.
Review overview
Summary
O regresso triunfante de Martin Scorsese a um mundo cinematográfico que ajudou a criar – mas que aqui ganha novos contornos.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização