Suspiria, o clássico de 1977 realizado pelo mestre italiano Dario Argento, serve de inspiração para uma homenagem pelo seu conterrâneo Luca Guadagnino numa inesperada incursão do consagrado realizador pelo género do terror.
Há dez anos atrás, Luca Guadanigno adquiriu os direitos para um remake de Suspiria, originalmente apontado para ser realizado por David Gordon Green, de quem falámos aqui recentemente a propósito de Halloween, curiosamente a sequela (ou revisitação, se preferirem) de outro clássico do terror do fim da década de setenta. Depois do afastamento de Green, Guadanigno tomou as rédeas do projecto e chamou o colaborador americano David Kajganich para a escrita do argumento daquilo que foi anunciado pelo realizador, não como um remake, mas antes como uma homenagem ao clássico de Dario Argento. Kajganich, que confessou não ser fã do original, resolveu então situar a nova versão em 1977, ou seja, o ano de estreia daquele filme, trazendo para a ribalta a tumultuosa situação social e política vivida na Berlim dividida de então. O que permanece igual nesta homenagem, então? Bom, a estrutura do original está presente: Susie Bannion é uma jovem americana que chega à cidade alemã para estudar na Academia de Dança Markos e aos poucos apercebe-se que esta é governada por um covil de bruxas.
Partilhando a mesma premissa com o filme em que se baseia, Suspiria 2018 é no entanto um filme muito diferente em todos os restantes aspectos. Cinzento onde o original era colorido, ancorado em preocupações do mundo real, onde o outro era um conto de fadas, Suspiria convida para a boca de cena a sombra do terrorismo vivida nervosamente na altura, fazendo anunciar sem subtileza através de resenhas noticiosas — ora na rádio, ora na televisão — a temática da culpa e da vergonha da nação alemã em relação à Segunda Guerra Mundial. Mormente, encapsula esta corrente de significado na nova personagem do Dr. Josef Klemperer. O que era subtexto — se é que estava presente de todo — no filme de Argento, torna-se aqui literal. O passado de rejeição materna de Suzy, bem como possíveis abusos às mãos da sua progenitora menonista, define as bases para a exploração do conceito de maternidade. Suzy encontra na professora de dança Madame Blanc uma influente figura materna alinhada com os seus desejos e impulsos, quiçá inclusivamente sexuais, onde ao invés a sua própria mãe a castigava de formas horríveis. E assim voltamos ao trauma: Guadagnino ilustra com mestria momentos oníricos de surreais pesadelos e memórias dolorosas, fruto da influência das matronas de poderes psíquicos no sono das jovens estudantes que controlam e manipulam. Não obstante a eficácia destes momentos desconcertantes de grande beleza plástica, a narrativa vai sendo sucessivamente sufocada pelas intermináveis camadas temáticas que nem sempre parecem conviver pacificamente, fazendo com que esta versão acabe por ter uma duração de duas horas e meia, aproximadamente uma hora a mais do que o filme em que se inspira.
Suspiria acaba por cativar mais nas suas cenas de dança. O que era acessório anteriormente, é agora — e bem! — parte integrante da história. Dakota Johnson é convincente como a jovem inexperiente Suzy que capta a atenção de Madame Blanc — Tilda Swinton, brilhante, a canalizar as grandes figuras da dança moderna Martha Graham e Pina Bausch, isto além de interpretar outros dois papéis que não revelo para não estragar a surpresa. Era muito importante que Johnson e Mia Goth, as únicas actrizes do grupo de dança que não são dançarinas profissionais, correspondessem na interpretação das elaboradas e impressionantes coreografias de Damien Jalet e, felizmente, pelo menos para o meu olho não treinado, ambas corresponderam. Porque a dança funciona aqui como uma extensão da feitiçaria. Se por um lado o covil representa a perseverança da arte e da cultura — bem como da resistência feminina — perante forças de oposição externas, também é verdade que no seu seio lavra uma luta de poder com consequências trágicas. Numa das primeiras cenas de choque, em que felizmente Guadagnino não se coibiu de mostrar violência física no ecrã, são os movimentos de dança de Suzy que infligem em paralelo e à distância lesões corporais indescritíveis a uma jovem em processo de fuga da academia. Mais tarde, Madame Blanc confessa a Suzy — numa cena inesperadamente reminescente de Clube de Combate — que o tempo da dança bonita chegou ao fim e manifesta o desejo de partir o nariz a todas as coisas bonitas. A dança como explicitação de uma vontade e desejo reais de luta, reação e libertação.
O que nos traz de volta ao elemento feminino — não sei se me arrisco a dizer feminista — e ao Dr. Klemperer. Este é um psicólogo que na cena de abertura recebe no seu consultório a dançarina em pânico Patricia, interpretada por Chloë Grace Moretz, assustada e receosa pelas descobertas que efectuou na academia. Klemperer limita-se a apontar judiciosamente os seus relatos, no entanto não atribui relevância às suas alegações e lança o julgamento liminar de que a jovem sofre de paranóia. Caso não fosse óbvio, mais tarde haverá uma personagem que afirmará explicitamente, parafraseando, “tens de ouvir as mulheres!”, sacudindo-nos imediatamente de 1977 para a realidade dos movimentos sociais e de solidariedade perante as vítimas de abusos sexuais (ou de outras naturezas) dos últimos tempos. No final, pouco importa que todas estas temáticas pareçam ombrear entre si na procura por uma linha consistente e satisfatória perante a longa e estilizada sequência grand guignol em que se mistura bruxaria, entidades fantásticas, sangue, entranhas e dança ritualista, e que possivelmente confundirá muita gente mas que por certo não deixará ninguém indiferente.
No capítulo musical, elemento sobremaneira decisivo no sucesso artístico do filme de Dario Argento, a escolha recaiu sobre Thom Yorke, o vocalista e compositor da consagrada banda indie Radiohead. Também aqui a escolha de não recriar a icónica música composta pelos Goblin foi acertada, optando Yorke por compor algumas canções e temas instrumentais constituídos pelas suas habituais sonoridades minimalistas e ambientais.
Ninguém pode acusar Luca Guadanigno de falta de ambição, mas esta sua virtude acaba por ser o seu maior defeito. Os seus instintos de não recriar a estética do filme original foram os correctos, mas a tentativa de intelectualizar o que, na essência, não passava de um exercício de estilo não se revelou a escolha mais acertada. Apesar de um elenco inspirado — do qual, além de Dakota Johnson e Tilda Swinton, também se destaca Mia Goth, no papel de Sara —, de um impressionante trabalho de coreografia nas danças decisivas para a narrativa e de exorbitantes momentos de choque, as várias camadas temáticas nunca se consolidam de forma consistente, acabando por dar mais a sensação de uma compilação de ideias do que uma obra completa e focada.
Review overview
Summary
Ambicioso, e inspirado e chocante a espaços, Suspiria tem no entanto várias camadas temáticas nunca se consolidam de forma consistente, acabando por dar mais a sensação de uma compilação de ideias do que uma obra completa e focada.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização