Não há melhor experiência do que aquela de levar um não-cinéfilo a uma projecção de um filme de Kiyoshi Kurosawa. A tabela de emoções inicia-se em melancolia, rapidamente passa para confusão, e assim ruma ao desconhecido onde permanece até os créditos finais darem de si, aparentemente sem razão de ser e sem nunca presentear o espectador com uma justificação. O primeiro filme a chegar ao circuito comercial português e, com muito prazer meu, a primeira vez que me foi dada a possibilidade de ver um filme do realizador numa sala portuguesa, Rumo à Outra Margem não é, como o título poderia indicar, um novo horizonte para o estimado contador de histórias. Kurosawa mantém-se no seu registo sobrenatural, ampliando o mesmo a uma dimensão espiritual, um romantismo que não é usual testemunhar no seu trabalho – principalmente para os fãs dos seus thrillers psicóticos -, e neste caso, um retrato gradual de luto de uma mulher solitária cujo marido tinha desaparecido três anos antes.
Quando o marido de Mizuki (Eri Fukatsu), Yusuke (Tadanobu Asano), aparece ostentando uma gabardine laranja na sua cozinha, Mizuki não parece atordoada ou minimamente alarmada pela sua presença. Ela apenas lhe pede para tirar os sapatos, que ele se esqueceu de tirar à porta quando entrou.
Teriam sido os bolinhos de arroz shiratama que ela cozinhou que impulsionaram a sua materialização? Ou estará ela a sonhar?
Não, Mizuki não está a sonhar. Ela está possuída por um mundo onde tal pergunta não corresponde nem deve corresponder à linguagem vivida. É quase cortesia do cinema japonês presenciar o sobrenatural com a realidade do mundo que damos por conhecido, sem maçanetas de portas suspeitas ou dispositivos electrónicos a entrarem em colapso, e invariavelmente um novo ‘olá’ a Kurosawa que venceu o galardoado prémio Un Certain Regard na edição de 2015 do Festival de Cinema de Cannes com este seu mais recente trabalho.
Yusuke come os bolinhos e no dia seguinte, os dois embarcam numa viagem aos locais e momentos vividos por ele no seu árduo caminho até à mulher, ao reencontro das pessoas que lhe mostraram bondade e o aceitaram após este se ter suicidado no mar em Toyama (mais tarde comido por caranguejos), ou assim ele conta. Começam com um jornaleiro numa pequena cidade, passam por um restaurante chinês gerido por um casal, e mais tarde uma comunidade no campo que tem uma tenra afinidade por Yusuke. E rapidamente o filme atinge um ritmo de tal forma pálido e difuso, onde nem a impulsividade da luz de Hidenori Nagata e Hiroshi Limura na representação dos dois mundos distintos na terra que aqui colidem, o retira do seu demasiado longo e por vezes, até me ocorreu, desnecessário tempo de duração. E fá-lo da mesma forma que um sonho é interrompido. Bruscamente e sem retorno, diminuindo em grande escala as hipóteses de reconciliação do seu espectador.
Entretanto e enquanto ainda não chegamos lá, é no deleite estético da coleção de flores de papel recortadas pelo Sr. Shimakage (Masao Komatsu), um jornaleiro que está morto mas continua preso àquele mundo e o primeiro a ser visitado, – “ele é como eu”, diz Yusuke – que Kurosawa nos consegue arrebatar. A sua exploração colorida da experiência humana e os vários estados que um de nós tem de passar quando em luto por um ente querido, gera um mundo com um visual limpo e asseado que faz lembrar aquele de um outono do passado: bege, castanho e amarelo torrado, um que procura mudança e sabe como a atingir, mas parece querer ficar exactamente onde está. Esta ambiência criada misturada com a honestidade da relação deste casal que está longe de ser harmoniosa transforma-se na paralisia de um argumento que se apaixonou pela sua textura despretensiosa e introspectiva. Aliás, se comparado ao mundo da literatura, este seria sempre um conto secundário sobre um algo maior. Ou seja, este mantém-se alerta e melodramático com vista a elaborar não só a perda do amor de Mizuki e do seu parceiro de vida mas também do Eu que ainda vive agarrado ao fantasma do passado. Acaba, no entanto, por afundar-se numa banda sonora que parece ilustrar mas acaba por o desfocar do seu objectivo; uma melancolia de elemento lúgubre que embora penetre, é fugaz assim que comandada pelo desejo do espectador; e uma viagem metafórica demasiado extensa para material emocionalmente capaz e delicadamente posicionado mas fino em estrutura.
Rumo à Outra Margem não irá assombrar os sonhos de ninguém nem falar mais alto após do que fala durante, todavia perante aqueles raios de sol que espelham o rio no seu final e assumem o sucesso da missão proposta por Yusuke à sua mulher, encontra-se também uma versão de aceitação do espectador no filme. Talvez Yusuke tivesse razão e houvessem sítios ainda mais belos para ver, onde o sangue flui com mais disciplina e a perspectiva de uma mulher em luto com ela mesma ultrapassa a sensibilidade reflectida no medo de um homem de passar o véu do além. Mas foi isto que Kurosawa nos deu.
Review overview
Summary
Sem se retirar do seu pequeno nicho, Kiyoshi Kurosawa não consegue elevar a sua metáfora até onde desejava, mas oferece-nos uma beleza paralisante e espiritual que até a um ponto intermédio do seu segundo acto, é dada livremente ao seu espectador e escutada no seu mais elevado timbre.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização