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Ready Player One: Jogador 1

de Steven Spielberg

mediano

Steven Spielberg embarca na onda recente de nostalgia e adapta o romance de Ernest Cline recheado de referências à cultura popular das última décadas, com especial incidência nos anos 80.

 

Se dúvidas houvessem que atravessamos um período fértil de nostalgia, com especial incidência nos anos oitenta, aí está o mais recente filme de Steven Spielberg para as mitigar de uma vez por todas. É natural que a cultura popular se recicle continuamente e ciclicamente em ondas de nostalgia. Os jovens de hoje serão os adultos e criadores de amanhã e, ao produzirem música, livros e filmes assentes nas suas paixões, é inevitável que deixem transparecer a época em que estas eram mais fortes e significativas. Os anos oitenta parecem inspirar uma identificação particularmente profunda dos autores com a época que resulta de uma visão romantizada e idealizada da sua juventude onde a sua história pessoal se mistura com o sentimento de melancolia provocado pela lembrança de alegrias passadas. É o caso de Ernest Cline, o escritor norte-americano nascido em 1972 autor do livro Ready Player One: Jogador 1.

O primeiro argumento de Cline, Loucos e Fãs, ou, no original, Fanboys, é uma comédia de 2009 escrita em parceria com Adam F. Goldberg — outro autor a navegar a onda revivalista da década que viu nascer a MTV com a série televisiva Goldbergs — que narra as peripécias de um grupo de fanáticos pelo Star Wars que, em 1999, embarcam numa épica viagem em que atravessam os EUA de lés a lés numa tentativa de convencerem George Lucas a mostrar A Ameaça Fantasma, a muitíssimo antecipada prequela da popular trilogia, a um dos amigos com uma doença terminal. Quando em 2011 foi lançado o seu primeiro romance, este já tinha sido protagonista de uma guerra entre editoras ganha pela Crown Publishing Group. No mesmo dia desta venda, Cline vendeu também os direitos cinematográficos à Warner Bros. com o compromisso de ser o próprio a adaptar o livro ao grande ecrã. Estávamos a mais de um ano do livro ser editado e de poder ser lido pelo público em geral.

Ready Player One está recheado de referências culturais das últimas décadas. Filmes, música e, especialmente, jogos electrónicos, foram incorporados numa narrativa ao mesmo tempo nostálgica — é claramente um produto de uma adolescência que assistiu ao nascimento dos videojogos e da era do blockbuster — e moderna — pois assenta na premissa de uma vivência colectiva numa realidade virtual, tecnologia ainda hoje em dia a dar os seus primeiros e hesitantes passos. A sua adaptação seria sempre um processo complicado por causa do licenciamento de todos os produtos e títulos nele mencionados, e iria sempre obrigar a alguns ajustes da acção para acomodar esta realidade. O argumento original de Cline foi reescrito pelo (não creditado) Eric Eason, sendo mais tarde polido por Zak Penn. Entretanto, Ready Player One ganhou, potencialmente, o seu maior trunfo: Steven Spielberg. O realizador norte-americano que, durante a década de oitenta, não só ajudou a definir a paisagem do cinema comercial norte-americano como recheou o imaginário fantástico e cinéfilo de muitos adolescentes por esse mundo fora, decidiu realizar este filme em grande parte referencial do seu próprio legado.

Em 2045, muitos dos centros populacionais da Terra tornaram-se autênticos bairros de lata devido à sobrepopulação, poluição, corrupção e mudança climática. Para escapar a este cenário, as pessoas ligam-se no OASIS, uma construção de realidade virtual onde podem escapar para um mundo de fantasia. Quando James Halliday,  o criador do OASIS, morre, deixa um desafio a todos os utilizadores: o primeiro a encontrar o easter egg por ele programado, ou seja, um conteúdo escondido na simulação, será o proprietário do OASIS. Entre os interessados em ganhar este jogo encontra-se a IOI, um fabricante de equipamentos de realidade virtual, na figura do seu CEO, Nolan Sorrento, reunido por um exército de jogadores profissionais contratados. No entanto, ainda ninguém foi capaz de completar a primeira de três missões, uma perigosa corrida motorizada numa paisagem urbana em constante mudança. Wade Watts, um adolescente que vive num bairro de lata com a tia, usa o seu avatar Parzival numa parceria não assumida com Aech, uma espécie de mecânico virtual. Mais tarde, conhece a famosa Art3mis, por quem se apaixona, apesar de só conhecer a sua representação digital. Ao visitar os arquivos virtuais com o registo da vida pessoal de Halliday, Parzival descobre finalmente uma dica para concluir com sucesso a primeira missão e encabeçar a lista de candidatos a ganhar o prémio final.

Ready Player One cumpre a promessa implícita ao adaptar o livro de Ernest Cline e oferece um manancial infindável de referências que irão deliciar os nerds mais empedernidos. Depois de um arranque desajeitado em que a construção do mundo do filme é feita à base de um tradicional e desinteressante voz-off, somos lançados para uma frenética sequência de acção — a primeira de muitas que, por certo, irão estragar muitos botões de pausa dos leitores caseiros daqui a uns meses. Se é verdade que as sequências de animação digital, uma vez no interior do OASIS, são espectaculares e impressionantes, também é verdade que recheiam a narrativa à custa da caracterização das personagens, não passando estas de criações pouco satisfatórias, tão unidimensionais como os seus avatares digitais. Ty Sheridan, como Wade/Perzival, assume a tarefa ingrata de encarnar um herói sem grande arco narrativo, sendo acompanhado por um grupo de personagens que praticamente não têm expressão fora do mundo virtual. A excepção é Olivia Cooke como Samantha/Art3mis: uma personagem feminina independente e decidida que, infelizmente, tem de se retrair na hora da verdade para que o personagem masculino cumpra o seu (suposto) destino. O camaleónico Ben Mendelsohn encarna Sorrento e parece fadado a encarnar incorrigíveis vilões rodeados de capangas servis e obedientes, onde se inclui Hannah John-Kamen como F’Nale Zandor, uma versão menor de Luv, a revelação de Blade Runner 2049 interpretada por Sylvia Hoeks. T. J. Miller empresta a voz a I-R0k, um vilão apenas digital — felizmente, somos misericordiosamente poupados à sua contraparte no mundo real —, enquanto que o novo actor favorito de Spielberg, Mark Rylance, encarna Halliday com um misto pouco óbvio de génio tímido e autismo para o qual reservarei uma segunda visualização antes de emitir a minha opinião final.

O espírito pode ser nostálgico, mas o estilo é cem porcento actual: vertiginoso e no limite da deficiência de atenção. O que torna Ready Player One num Spielberg atípico, aparentemente mais preocupado com o artifício visual do que com motivações, conflitos e boas personagens, ou seja, os ingredientes essenciais de uma boa narrativa. O irónico é que esta suposta celebração das várias sub-culturas tão maltratadas no passado seja, na verdade, o resultado de uma produção milionária para ser consumida por um público massificado que as legitimou e normalizou. O que antes era um insulto — palavras que reflectiam paixões intensas por criações artísticas e de entretenimento, como nerd, geek, fã de banda desenhada ou simplesmente fã de Star Wars, por exemplo — são agora sinónimos superficiais e passageiros do que está na berra e na moda. (Veja-se o sucesso dos filmes da Marvel, numa altura em que as vendas das bandas desenhadas atingem mínimos históricos.) No final, parecendo uma profecia que se cumpre a si própria, Spielberg parece cometer todos os pecados de que é (muitas vezes injustamente) acusado, pregando um final moralista, sacarino e, para falar a verdade, confuso e contraditório na sua “mensagem”.

 

A partir deste momento, serão revelados pormenores que poderão ser considerados spoilers. Considerem-se avisados: continuem por vossa própria conta e risco.

 

Feitas as críticas, é inegável a capacidade de entretenimento de Ready Player One, especialmente para quem tenha uma predisposição para se identificar pessoalmente com as referências atiradas na nossa direcção durante a sua projecção — e, para tal, aconselho vivamente a experiência em IMAX 3D. Se as escolhas musicais são relativamente óbvias — Van Halen e Twisted Sister são alguns dos exemplos que ancoram o filme imediatamente no espírito da década de oitenta —, a cultura cinéfila, bem como a dos videojogos (se bem que neste capítulo me passe tudo praticamente ao lado), conta com um leque tão variado de citações que vão das mais óbvias — o malfadado gorila sobredimensionado King-Kong, o amigável mas perigoso gigante de ferro, o ícone assassino Freddy Krueger, o boneco Chucky, também ele fã de objectos cortantes — às mais obscuras — o ignorado filme de 1984 As Aventuras de Buckaroo Banzai na 8ª Dimensão, a motorizada de Akira, a arma de Krull – Além da Imaginação ou até um cartaz da candidatura de Goldie Wilson para presidente da câmara de Hill Valley, numa das muitas piscadelas de olho a Regresso ao Futuro. Aliás, o autor desta trilogia e amigo pessoal de Spielberg, Robert Zemeckis, é contemplado com inúmeras referências óbvias: desde o Delorean conduzido por Parzival, o avatar de Wade, até ao cubo Zemeckis, uma variante do cubo de Rubik com propriedades de manipulação temporal, ou inclusivamente a utilização de Alan Silvestri na composição da banda sonora — o perene colaborador John Williams estava ocupado com The Post, o anterior título do prolífico realizador —, invocando sonoridades reminiscentes das aventuras de Marty McFly.

A melhor sequência de Ready Player One acontece sensivelmente a meio da narrativa e oferece um vislumbre do que podia ter sido uma abordagem menos frenética a este material. Quando os heróis têm de procurar uma pista no interior da clássica adaptação de Stephen King por Stanley Kubrick, Shining, o efeito é imersivo e inesperadamente refrescante. Utilizando os motivos musicais originais e habitando recriações irrepreensíveis do filme, Spielberg quase promete uma nova e alternativa perspectiva sobre momentos tão bem nossos conhecidos, aqui recriados no contexto da demanda de Perzival e companhia. É um momento satisfatório que, assim que é abandonado, deixa imediatamente saudades e, infelizmente, não tem equivalente no resto do desenrolar da acção.

Ready Player One ignora o potencial de crítica social, política ou tecnológica e pretende funcionar principalmente como uma homenagem ao verdadeiro espírito de criação de artefactos populares, bem como ao reconhecimento dos seus autores simbolizado pelo conceito do easter egg, aquela característica escondida pela qual temos de suar antes de sermos merecedores de a desfrutar. Porém, não deixa de ser novamente irónico que Steven Spielberg tenha optado por consagrar tal subtileza e elegância com tamanho assalto vertiginoso aos sentidos que tão depressa entretém como se desvanece da memória logo assim que se sai da sala de cinema.

Review overview

Summary

Ready Player One ignora o potencial de crítica social, política ou tecnológica e pretende funcionar principalmente como uma homenagem ao verdadeiro espírito de criação de artefactos populares. É pena que seja um assalto vertiginoso aos sentidos que tão depressa entretém como se desvanece da memória logo assim que se sai da sala de cinema.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
2.5 10 mediano

Comentários

Written by António Araújo

Cinéfilo, mascara-se de escritor nas horas vagas, para se revelar em noites de lua cheia como apaixonado podcaster.

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