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[Queer Lisboa 2018] Tinta Bruta

de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon

muito bom

“Minha avó dizia que o centro de Porto Alegre vai desaparecer um dia. Porque é um aterro. A água tomava conta de tudo. Aí foram aterrando. Os edifícios vão afundando um pouco a cada ano. Até que um dia vai estar tudo enterrado” comenta Paula (Camila Falcão) junto de Pedro (Shico Menegat), o protagonista. É uma fala que permite expor de modo paradigmático o desencanto que boa parte dos personagens de “Tinta Bruta” sentem em relação a este espaço citadino, um sentimento que é exacerbado pela fotografia de Glauco Firpo. As tonalidades frias ou desprovidas de luz predominam e exponenciam a desesperança, sobretudo durante o dia, enquanto a noite surge como uma companheira que traz uma miríade de sensações, tais como libertação, reclusão, solidão, melancolia e desejo. Os realizadores Filipe Matzembacher e Marcio Reolon incutem um tom pessimista e pouco acolhedor a esta cidade, um local que parece incapaz de abraçar as diferenças ou de trazer perspectivas de futuro aos jovens, que o diga Pedro, um jovem homossexual que ganha a vida a efectuar performances em salas de chat. De cabelos compridos e olhar melancólico, Shico Menegat transmite com eficiência a personalidade introvertida e solitária deste personagem, um indivíduo que reprime regularmente os sentimentos e tem no seu quarto um porto de abrigo e um portal para a libertação.

O quarto de Pedro é um dos cenários de maior relevo do filme. É neste espaço de média dimensão e decoração simples que o protagonista assume o nome de GarotoNeon e efectua espectáculos recheados de música. Não existem grandes adereços, ou coreografias elaboradas, com as performances de Pedro a destacarem-se sobretudo pelas tintas néones de tonalidades vivazes com que o jovem cobre o corpo. Neste pequeno espaço, o personagem interpretado por Shico Menegat liberta os sentimentos que reprime durante o dia, enquanto dialoga com o seu público e tenta manter o seu negócio. O jovem encontra-se a lidar com um processo em tribunal. Inicialmente não sabemos o que conduziu a essa situação, embora, aos poucos, percebamos o quanto este sofreu e sofre com a homofobia. Esta é uma temática bem presente, bem como a solidão e os abandonos. A vida do personagem principal é precisamente marcada por estas. O pai abandonou-o, a mãe faleceu quando ele era jovem, a irmã (Guega Peixoto) está de partida para Salvador, com estas partidas a parecerem ter contribuído para o protagonista formar uma personalidade reservada. O quotidiano deste sofre uma alteração quando descobre que Guri25 está a fazer-lhe concorrência e a efectuar perfomances online com néones, algo que o leva a querer conhecer o concorrente, nomeadamente, Leo (Bruno Fernandes).

“Tinta Bruta” surpreende-nos em relação a Leo. Esperamos alguém hostil ou oportunista, mas o argumento opta por um caminho mais subtil ao apresentar um personagem sensível e complexo, que aos poucos forma uma relação de proximidade com o protagonista. Bruno Fernandes imprime uma sensibilidade muito própria e empatia ao seu personagem, um bailarino que procura ganhar um dinheiro-extra com os espectáculos online, tendo em vista a poder concorrer a uma bolsa. Se Pedro é inicialmente algo rígido nos seus movimentos, já Leo é mais solto, com os espectáculos a beneficiarem das dinâmicas entre ambos. Filipe Matzembacher e Marcio Reolon exibem boa parte dos trechos das performances com uma resolução baixa, algo que adensa a ideia de que estamos perante vídeos dos chats do género, enquanto transformam o espectador num voyeur que observa os espectáculos dotados de erotismo de Pedro e Leo. Uma troca de fluídos ganha toda uma estranha arte com a tinta, ao passo que as tonalidades garridas contrastam com a iluminação azulada e incutem um tom hipnotizante aos números dos personagens interpretados por Shico Menegat e Bruno Fernandes. Diga-se que a química entre os dois actores é notória, com ambos a inserirem uma sinceridade latente quer na exposição dos sentimentos que envolvem os seus personagens, quer a explanarem a personalidade de cada um.

“Tem uma coisa no jeito que te olham. Achei que um dia isso fosse acabar” desabafa Pedro junto do Leo, enquanto este responde “Não acaba nunca. Eles vão pouco a pouco fazer tu te sentir um merda. Até tu perder as esperanças”. Ficamos perante um momento de maior abertura das emoções de parte a parte, algo que não só permite aos estreantes Shico Menegat e Bruno Fernandes protagonizarem um episódio emocionalmente poderoso como deixar patente o quão dolorosos podem ser os comportamentos homofóbicos junto daqueles que sofrem com os mesmos. A noite parece ser a única fase do dia em que estes dois personagens se sentem mais confortáveis, embora nem por isso seja livre de perigos, ainda que contribua para o protagonista a espaços consiga libertar-se um pouco mais. Este tem de aprender a conviver consigo próprio, bem como a enfrentar as dificuldades colocadas por uma sociedade que não o protege ou o trata como um igual. A certa altura comenta que se tivesse cometido suicídio não teria acontecido nada àqueles que o perseguiam, mas em compensação poderá ser preso por uma reacção violenta a algo ainda mais agressivo. É um dos vários diálogos pontuados de sinceridade que são elevados pelo trabalho dos intérpretes, neste caso por Shico Menegat, enquanto ficamos diante da revolta sentida por Pedro e (novamente) da hipocrisia da nossa sociedade.

Os espectáculos fazem com que este se transforme e se liberte, com a tinta a cobrir o seu corpo e a soltar temporariamente a sua timidez. Aos poucos percebe que não precisa da tinta para sobressair, tendo em Leo uma figura de especial relevância para a sua vida. Note-se quando encontramos a dupla durante a noite, numa mata, com os close-ups a serem utilizados com precisão e a reforçarem a intimidade entre os dois. Outro elemento com algum relevo na vida do protagonista é a avó, com Sandra Dani a aparecer em pouco tempo do filme, mas a expor com acerto a faceta calorosa da sua personagem. Quem também sobressai ao longo de “Tinta Bruta” é a banda sonora, seja para sublinhar a melancolia e a alegria que percorrem em simultâneo uma saída nocturna, ou a exacerbar a energia e o erotismo de alguns espectáculos. Dividido em três partes, “Tinta Bruta” é drama que fica preso na pele e na mente, enquanto confirma Filipe Matzembacher e Marcio Reolon como nomes a reter com enorme atenção.

Review overview

Summary

Dividido em três partes, "Tinta Bruta" é drama que fica preso na pele e na mente, enquanto confirma Filipe Matzembacher e Marcio Reolon como nomes a reter com enorme atenção.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
4 10 muito bom

Comentários