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[Queer Lisboa 2018] Girl

de Lukas Dhont

perfeito

A relação dos adolescentes consigo próprios nem sempre é fácil, seja pela forma muito particular como encaram o tempo e o mundo que os rodeia, ou como se observam e ao seu corpo, ou como sentem tudo com uma intensidade assinalável. Existe uma ânsia de descobrir, viver e sentir, que o diga Lara (Victor Polster), a protagonista de “Girl”, uma adolescente transsexual que deseja ser bailarina profissional. Esta anseia que as hormonas provoquem efeito no seu corpo e completar a cirurgia de redesignação sexual, enquanto lida com inquietações próprias da idade, bem como com as limitações de ter nascido no corpo de um rapaz. Mais do que expor o bullying ou a intolerância para com Lara, o realizador Lukas Dhont aborda o confronto interior e as inquietações da jovem, algo elevado pela interpretação sublime de Victor Polster. O sorriso que o intérprete imprime a Lara carrega no seu interior a ânsia da adolescente em ser feliz, ao passo que o seu olhar exprime uma miríade de sentimentos contidos que aspiram a ser extravasados. É personagem com quem criamos empatia, algo que não acontece ao acaso, com boa parte do mérito a recair quer em Victor Polster, quer no realizador.

Lukas Dhont embala-nos para o interior das rotinas, descobertas, receios, inquietações, conquistas e derrotas da protagonista, quase sempre através de pequenos episódios que muito acrescentam ao enredo e à personagem. Note-se o esforço de Lara para acompanhar os ritmos dos treinos e ensaios na academia de dança onde entrou recentemente, ou a tentativa de tapar o seu órgão sexual, ainda que para isso tenha de sofrer e colocar a sua saúde em risco. São episódios que contribuem não só para conhecermos a personagem e os seus anseios, mas também para formarmos um vínculo com a adolescente, enquanto somos compelidos a partilharmos as sensações desta, tais como alegria, dor, ou tristeza. Tudo é exposto com enorme contenção, com a subtileza a surgir como a palavra de ordem ao longo deste drama delicado, envolvente e marcante. Essa delicadeza é particularmente notória na ligação quase maternal que a protagonista mantém com Milo (Oliver Bodart), o irmão mais novo, ou na relação de enorme proximidade que conta com Mathias (Arieh Worthalter), o seu pai. Arieh Worthalter insere uma postura afável, compreensiva e terna ao seu Mathias, um taxista que procura apoiar a filha nas suas decisões. É praticamente impossível não sentir admiração pelo personagem, enquanto este tenta compreender Lara, embora, a espaços, não consiga fugir ao habitual confronto de gerações.

O calor humano que permeia a casa desta família é exacerbado pelo trabalho de Frank van den Eeden na cinematografia, sobretudo a partir da iluminação, com os tons mais quentes a reforçarem as características acolhedoras deste lugar. No início do filme, encontramos Lara, Mathias e Milo a mudarem-se precisamente para o interior deste lar. Encontram-se em busca de um recomeço, enquanto lidam com novas rotinas no interior de uma cidade distinta. O jovem Milo sente inicialmente alguma dificuldade de adaptação, ao passo que Lara tem na academia de dança um dos seus grandes desafios. Os treinos implicam sangue, suor e lágrimas, um esforço sublinhado pelo trabalho de câmara, com esta a bailar com a protagonista e a captar as sensações vertiginosas que percorrem o seu âmago. Observe-se uma cena onde as tonalidades azuis predominam e exacerbam a dor e a tristeza de Lara, enquanto esta baila praticamente até perder a noção dos movimentos do seu corpo e o domínio do mesmo. Não são raras as vezes em que encontramos os pés de Lara a sangrar, embora a maior dor pareça surgir do interior da sua alma. “Apenas quero ser uma rapariga”, diz ao pai num desabafo que espelha a impaciência em relação à ineficiência da terapia hormonal que se encontra a efectuar.

No semblante de Victor Polster encontramos espelhadas as ansiedades da jovem, tal como os seus receios e a tentativa de conter os seus desejos. Os médicos procuram acalmá-la e fazer com que esta se aceite a si própria. As colegas consentem a sua presença, embora nunca a encarem como uma igual, enquanto a aspirante a bailarina parece incapaz de conviver com um corpo que não lhe parece pertencer. A tensão interior é latente, ainda que tente passar para fora a ideia de que está tudo bem. Não está, bem pelo contrário, algo exposto ao longo deste drama sublime, que nos coloca perante uma jovem transsexual que tenta afirmar a sua personalidade e identidade, procura descobrir a sua sexualidade e conta com uma relação tumultuosa com o corpo. “Girl” incute ainda personalidade e vida aos seus personagens secundários. Note-se a relação de proximidade que o pai da protagonista forma com Christine, ou as cenas que envolvem o jovem Milo na escola, com o argumento a nunca se esquecer de conceder novas camadas a estas figuras dotadas de humanidade.

As sonoridades amenas que permeiam a banda sonora contribuem e muito para sublinhar a delicadeza que pontua o enredo, um pouco à imagem da sobriedade que Victor Polster incute à personagem. O intérprete tem em Lukas Dhont um apoio de peso, com o cineasta a conceder toda uma atenção aos gestos da protagonista e à sua relação com o corpo, sempre com uma mestria assinalável. Veja-se os trechos em que encontramos Lara a observar-se ao espelho, ou a retirar as protecções dos dedos e a expor os seus pés ensanguentados, ou a mexer no seu cabelo. Como conviver com a sensação de que não somos nós próprios? O exterior de Lara não corresponde totalmente ao seu interior. Esta situação desperta uma sede de mudança no âmago desta adolescente dotada de complexidade e enorme humanidade, que acompanhamos com enorme atenção e admiração ao longo daquela que é uma das obras emocionalmente mais poderosas do ano. Estamos perante o grande filme da edição de 2018 do Queer Lisboa.

Review overview

Summary

Uma das obras emocionalmente mais poderosas do ano.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
5 10 perfeito

Comentários