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[Queer Lisboa 2018] Entrevista a Marcio Reolon sobre Tinta Bruta

“Tinta Bruta” foi um dos grandes destaques da secção competitiva de longas-metragens da 22ª edição do Queer Lisboa. A Take Cinema Magazine teve a oportunidade de entrevistar online Marcio Reolon (ao centro), um dos realizadores do filme. Ao longo da entrevista foram abordados assuntos relacionados com a representação da cidade de Porto Alegre, a escolha de Shico Menegat e Bruno Fernandes, o modo como “Tinta Bruta” dialoga com o Brasil de hoje, entre outros assuntos. Fotografia: IMDB.

Take Cinema Magazine: Esta é a segunda longa-metragem que realizam em conjunto. O que existe de cada um no interior de “Tinta Bruta”? Podem falar um pouco do vosso método de trabalho?

Marcio Reolon: Tanto “Tinta Bruta” quanto “Beira-Mar” abordam universos e conflitos que nos interessam, mas de maneiras diferentes. Ambos surgiram de anseios nossos, mas caminham em direcções distintas. “Tinta” surgiu de um curta-metragem nosso chamado “Quarto Vazio”. O filme narrava o mesmo Pedro (com algumas características distintas), tendo de lidar com a despedida de irmã. Esse foi um sentimento que nos tomou, a de viver em uma cidade-porto, um local de partidas, então criamos esse personagem que tem uma espécie de síndrome de abandono. Nossas narrativas sempre partem dos personagens e a eles dão a maior importância ao serem contadas (isso se reflecte no processo inteiro, como por exemplo, os meses que dedicamos ao trabalho com os actores).

TCM: Existe algum desencanto por parte dos personagens em relação à cidade de Porto Alegre, algo exacerbado pelo trabalho de Glauco Firpo na fotografia. Como é que trabalharam a representação desta cidade com o Glauco Firpo? Sentem que a Porto Alegre de hoje é uma cidade pouco propícia a proporcionar oportunidades de futuro aos jovens ou a aceitar a identidade de cada um?

MR: Com certeza. Porto Alegre já foi uma cidade bem progressista mas com o passar dos anos foi se tornando mais hostil, violenta e reaccionária. Ela parece uma cidade doente, abandonada. Desde o momento em que decidimos abordar essa Porto Alegre, sabíamos que ela deveria ser uma personagem importante da narrativa, então discutimos muito essa cidade quase fantasma, em que as pessoas observam umas às outras à distância, mas pouco interagem.

TCM: A vida do Pedro é muito marcada pelas perdas e pelos abandonos. O pai abandonou-o, a mãe faleceu quando ele era jovem, a irmã está de partida para Salvador e Leo procura sair de Porto Alegre. Podemos falar de “Tinta Bruta” como um filme sobre a perda e o abandono? O quanto é que estas perdas e abandonos contribuíram para o modo de ser do Pedro?

MR: Ele é um sobrevivente. E sobrevive inclusive a estas perdas. Elas o definem também, mas o que achamos bonito de sua trajectória é que, mesmo que de maneira muito subtil, ele consegue se reerguer. Pedro vê na internet esse espaço de comunicação. Veja bem, se nas ruas ele encara essa violência latente e na vida familiar e afectiva tantas despedidas, o ambiente virtual se torna um espaço para suas principais relações, e por isso o GarotoNeon é tão importante para ele. Além do dinheiro, o personagem criado por ele lhe possibilita se transformar em quem gostaria de ser e se comunicar, mesmo que isolado em seu quarto.

TCM: A química entre o Shico Menegat e o Bruno Fernandes é evidente, com ambos a transmitirem uma sinceridade notória quer na exposição dos sentimentos que envolvem os seus personagens, quer a explanarem a personalidade de cada um. Podem falar um pouco do trabalho que efectuaram com os actores na construção destes personagens e das suas dinâmicas? Desenvolveram algum trabalho de pesquisa junto de artistas que efectuam espectáculos do género?

MR: Somos muito gratos por termos encontrado durante o processo Shico (que interpreta Pedro) e Bruno (que interpreta Leo). Ambos têm backgrounds distintos, mas se dedicaram de maneira intensa e honesta para os personagens. Shico nunca havia actuado (o conhecemos em uma festa e enxergamos nele o físico frágil mas a energia reactiva, pesada de Pedro) e Bruno é actor de teatro, integrante de um grupo muito especial de Porto Alegre chamado Pretagô, mas sem experiência em cinema. Foram aproximadamente 7 meses de ensaios, e acreditamos que cada encontro está impresso no resultado final.

TCM: O quarto do Pedro é um dos cenários de maior relevo do filme. É neste espaço que o protagonista assume o nome de GarotoNeon e efectua espectáculos recheados de música e liberta-se. Conceberam este cenário como um local que é simultaneamente um porto de abrigo e um lugar libertador? Como é que decorreu o processo de escolha e decoração da casa do protagonista?

MR: Primeiro sabíamos que o filme se passaria quase que na sua totalidade no centro da cidade, que é uma região importante, mas abandonada, tomada por prédios vazios e com ruas vazias a noite. O apartamento de Pedro e sua irmã fala muito sobre os personagens, então criámos um espaço com resquícios de passado, de histórias. O quarto em especial deveria se comunicar com a cidade (através daquelas grandes janelas) e através de suas paredes gastas revelar que ele continha um passado. Foi importante criar uma diferença entre o quarto quando habitado pela irmã e quando habitado por Pedro (especialmente na organização dos móveis). Por fim, inclusive os últimos ensaios foram realizados dentro do apartamento para entender a dinâmica de Pedro – de uma forma mais naturalista – já dentro do espaço.

TCM: Uma parte dos trechos dos espectáculos é exibida com uma resolução baixa, algo que adensa a ideia de que estamos perante vídeos de chats do género e contribui para transformar o espectador num voyeur que observa as performances. Podem falar um pouco sobre a decisão de exibirem as performances do Pedro com estas especificidades e do modo como coreografaram estas cenas? Como é que surgiu a ideia de utilizar as tintas néones?

MR: Para nós sempre foi importante que Pedro utilizasse uma marca artística durante as suas apresentações. Que fosse um modo dele transmitir seus sentimentos (e desejos) sem precisar das palavras. A tinta neon veio disso: é algo que brilha e te destaca no meio de uma multidão cinza e heteronormativa (ela se relaciona com a vivência queer). Durante o processo de ensaios realizámos diversos exercícios para que os actores desenvolvessem seus modos particulares de performarem em frente a webcam, assim como entendessem as personas que criam para seus shows (porque GarotoNeon não é exactamente a mesma pessoa que Pedro). Por fim, nos interessava muito a utilização dessa textura que varia, da câmera do filme para a webcam, os grãos e os pixels, e como as cores correspondem plano a plano. Foi um processo de muitos testes nesse sentido, mas para que, no momento da filmagem, os actores tivessem maior liberdade.

TCM: A certa altura do filme encontramos o Pedro a desabafar: “Tem uma coisa no jeito que te olham. Achei que um dia isso fosse acabar”, enquanto o Leo responde “Não acaba nunca. Eles vão pouco a pouco fazer tu te sentir um merda. Até tu perder as esperanças”. É um dos diálogos mais poderosos do filme, que espelha os efeitos da intolerância e beneficia e muito do trabalho dos intérpretes. Existiu algo de pessoal na construção destes diálogos? Sentem que filmes como “Beira-Mar” e “Tinta Bruta” podem ajudar a lutar contra a intolerância e contra a ignorância?

MR: Com certeza sempre há algo de pessoal. Não são necessariamente autobiografias, mas muito de nossas angustias estão nos filmes. O Brasil vive um momento de grande intolerância e os grupos que historicamente são perseguidos sempre se tornam os primeiros alvos. Foi importante para nós realizarmos um filme sobre uma sociedade tóxica, violenta e egoísta, mas com um caminho: a importância de nos conectarmos. E sobre a influência de filmes como Beira-Mar e Tinta Bruta, absolutamente, a arte é reflexo de nossa sociedade e é importante nos vermos nela, vermos nossas conflitos e sentimentos.

TCM: O quanto é que os acontecimentos recentes da vida política e social do Brasil influenciaram o vosso filme?

MR: O nosso cinema é directamente influenciado pelo contexto social e político que está inserido. Durante o processo de escrita, o Brasil sofreu um golpe e a presidenta democraticamente eleita foi retirada do cargo. A partir desse momento se intensificou um crescimento de uma direita ignorante e preconceituosa, e a possibilidade de um futuro próximo de um pesadelo. Assim, fomos tomados por um sentimento de raiva e desespero que atravessou o filme, potencializando a hostilidade social, o isolamento e a angústia de Pedro, e por consequência seu lado reactivo e determinado em sobreviver.

TCM: Muito obrigado pelo tempo disponibilizado a responder às questões.

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