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[Queer Lisboa 2018] Entrevista a Guto Parente sobre “Inferninho”

Estreado na edição de 2018 do Festival de Roterdão, “Inferninho” é um dos destaques da secção Queer Art do 22º Queer Lisboa. A Take Cinema Magazine encontra-se a cobrir o prestigiado certame e teve a oportunidade de entrevistar online o realizador Guto Parente. Ao longo da entrevista foram abordados assuntos relacionados com a colaboração entre Guto Parente e Pedro Diógenes, o quanto a origem teatral do projecto influenciou a mise-en-scène do filme, entre outros assuntos.

Take Cinema Magazine: O Guto Parente e o Pedro Diógenes já tinham trabalhado juntos como realizadores de longas-metragens, ainda que com a companhia de Ricardo Pretti e Luiz Pretti. Podem falar um pouco do vosso processo de trabalho em conjunto? O que existe de cada um no interior de “Inferninho”?

Guto Parente: A gente trabalha juntos desde o nosso primeiro curta, “Cruzamento”, de 2007. Temos um histórico bem longo. E também somos primos. Crescemos assistindo filmes juntos, construindo nossa cinefilia juntos. O “Inferninho” então tem essa mistura que não é de agora. No filme existe o que é de cada um, o que é dos dois, o que não é de nenhum, e, principalmente, o que é de todos. Porque uma das coisas que aprendemos nessa nossa trajectória de muitas direcções compartilhadas, trabalhando com equipes pequenas, entre amigos, e em processos colaborativos, foi que quanto mais todos na equipe se sentem com autonomia criativa e as relações no set se dão numa troca horizontal mais rico vai ser o universo do filme. Daí o trabalho mais importante da direcção talvez seja fazer com que todos sintam e percebam o mesmo filme. Que todos caminhem na mesma direcção. E eu e o Pedrinho nos complementamos muito bem nesse trabalho.

TCM: De acordo com o site do Festival de Roterdão, “Inferninho” foi desenvolvido inicialmente como uma peça de teatro. Para além disso, é uma parceria entre o colectivo Alumbramento Filmes e o Grupo Bagaceira de Teatro. O quanto é que essa origem teatral e a parceria com um grupo de teatro influenciou a mise-en-scène do filme?

GP: Esse encontro entre cinema e teatro é a base que constitui todo o projecto. É algo determinante em todos os passos, desde o desenho de produção, concepção visual, trabalho com os actores e estilo de decupagem. Como a peça nunca chegou a existir de fato, existiu só como uma ideia, como o embrião do projecto, nunca tivemos esse parâmetro de comparação entre uma coisa e outra. O que existe de teatral no filme é algo construído dentro do filme e para o filme, a partir de uma vontade nossa de colocar essas duas linguagens para dançar. Nada de novo na história do cinema, mas algo cada vez mais raro hoje em dia, principalmente no cinema brasileiro, onde existe uma tradição muito forte de um realismo transparente que esconde seus artifícios. Nossa aposta foi em evidenciar o artificio.

TCM: O bar do título surge quase como um dos protagonistas do filme. Como se processou a decoração do Inferninho e a inclusão de uma série de especificidades que lhe concedem uma personalidade muito própria?

GP: Como tínhamos pouco dinheiro e pouco tempo para filmar, decidimos que o melhor seria buscar um lugar afastado da cidade e onde tivéssemos um controle maior. Alugámos um galpão de um artista amigo nosso e construímos o bar todo lá, do zero. Todos os espaços filmadas em uma mesma locação, como em um estúdio. E a Taís Augusto, que é a directora de arte do filme, acabou aproveitando vários objectos antigos que esse nosso amigo tinha guardado em um depósito ao lado do galpão. A gente tinha conversado sobre o bar ser um espaço atemporal, mas com um certo ar de anos noventa, então foi perfeito. Ela e a equipe dela conseguiram compor com isso um bar muito mais interessante do que a gente conseguia conceber na nossa cabeça. Quando chegamos no set foi uma surpresa maravilhosa.

TCM: O ambiente que existe no interior do Inferninho a espaços traz à memória o café da esquina onde todo o mundo se conhece. Existe algum café ou bar que vocês frequentam que serviu de inspiração para este espaço? Alguma da vossa experiência a frequentar um ou outro local com regularidade contribuiu para o modo como vocês conceberam o Inferninho?

GP: Certamente uma coisa que praticamente todos da equipe possuem em comum é um espírito boémio. Alguns mais, outros menos, alguns ainda actuantes, outros já em vias de se aposentar, mas as lembranças de encontros especiais ao redor de mesas de bares são inúmeras. Principalmente quando éramos estudantes de cinema. Eu, Pedro e o Victor de Melo, o fotógrafo do filme, por exemplo, nos formamos juntos e temos um histórico bem extenso de noitadas em bares estranhos da cidade. E Fortaleza é uma cidade que tem uma dinâmica nocturna bastante surreal. Só vivendo para entender.

TCM: O guarda-roupa e a maquilhagem despertam facilmente à atenção, seja do Coelho que serve às mesas, ou da Wonder-Woman com um bigode de fazer inveja a Conchita Wurst. O quanto é que procuraram que o guarda-roupa e a maquilhagem contribuísse para a atmosfera meio surreal do filme? Podem falar um pouco do vosso trabalho com elementos como Gutto Moreira, Filipe Arara e Isaac Bento para inserirem todo este visual diversificado e peculiar nos personagens?

GP: A equipe de figurino e maquilhagem do “Inferninho”, essas pessoas queridas que você citou, tem um papel autoral fundamental no filme. Eles trabalharam com toda a liberdade criativa, sempre propondo as mais loucas e inusitadas ideias, e eu e o Pedrinho só nos encantando cada vez mais. Foi impressionante o que a galera fez com o pouco que tinham. Eu acho de uma genialidade espantosa. Pena que prémios de melhor figurino e maquilhagem só existam no Oscar.

TCM: Deusimar tanto procura sair do bar como parece ter receio de se aventurar. Como foi o processo de construção deste personagem com Yuri Yamamoto? A bagagem teatral do elenco foi importante para o tom que vocês procuraram atribuir ao filme e para o vosso trabalho com os actores?

GP: Muito da personagem da Deusimar veio da própria experiência de vida do Yuri. E como a escrita do roteiro se deu já com os actores definidos desde o início do processo, tivemos a oportunidade de construir os personagens junto com os actores, escrevendo o roteiro e ensaiando, descobrindo juntos os caminhos e as nuances de cada um. O Yuri foi a cada novo tratamento trazendo mais e mais densidade para a personagem, nos fazendo perceber a complexidade da Deusimar, levando a personagem cada vez mais alto. Existe um mistério na Deusimar que é do Yuri, que só ele podia imprimir. Yuri é Deusimar e Deusimar é Yuri. A gente só precisou ajudar a trazer isso mais à tona.

TCM: No Inferninho, o direito à diferença e o respeito pela identidade de cada um parecem ser algumas das palavras de ordem. Sentem que, em certa medida, o bar que dá título ao filme contrasta com a intolerância que permeia alguns sectores da nossa sociedade, inclusive de alguns candidatos políticos? Podemos inferir a presença de alguns comentários de foro político e social no interior do roteiro do filme ou foi algo não propositado?

GP: O nosso interesse no Inferninho sempre foi tocar a realidade mas sem vestir-se nela. Então o gesto político do filme se encontra em camadas menos explícitas, de maneira menos discursiva, ainda que assertivo em alguns momentos. E existem os comentários intencionais e tudo o que vem dos nossos inconscientes, que acaba escorrendo por onde a gente menos espera. Talvez não seja possível hoje em dia, vivendo esse momento político e social trágico que estamos vivendo, diante de regressões inimagináveis, não impregnar qualquer coisa que a gente toque com coisas relacionadas a isso. Por mais fantasioso e não-realista que seja o universo que estejamos construindo. Fazer cinema no Brasil, ainda mais nesse Brasil actual, é barra-pesada.

TCM: Como é que o “Inferninho” dialoga com o Brasil de hoje?

GP: O Brasil de hoje é um país descendo ladeira abaixo. As perspectivas nunca foram tão nefastas. Estamos diante da possibilidade real de um regime fascista se instaurar no país legitimado pelo voto. Do discurso de ódio e de opressão das minorias se tornar plataforma de governo. E o Inferninho é um sopro de amor em meio a tudo isso. É a negação do ódio e a afirmação do respeito às diferenças, da tolerância. Em tempos de tanta violência, um abraço carinhoso.

TCM: O Brasil conta com uma vasta e diversificada produção cinematográfica, com muitas das obras a serem associadas às regiões onde foram produzidas ou filmadas e às especificidades das mesmas (como o Cinema de Pernambuco). Quais são os principais desafios de desenvolver um filme no Ceará?

GP: O Ceará é hoje um dos estados com uma das produção de cinema mais ricas e diversificadas do Brasil, só que a gente não provoca tanto alarde quanto nossos vizinhos de Pernambuco. O nosso maior desafio talvez seja encontrar esse lugar de projecção e afirmação do nosso cinema, que ao meu ver tem como principal força sua ousadia estética, qualidade que dificulta algumas entradas. A gente precisa conseguir alargar as portas.

TCM: Muito obrigado pela disponibilidade demonstrada.

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