Dotado de um humor negro assinalável e de uma capacidade notável para escancarar as hipocrisias da nossa sociedade, “Gisaengchung” (em Portugal, Parasitas, título que passamos a adoptar) enfia o espeto na indiferença enquanto efectua uma série de comentários de foro social, sempre com um enfoque no contacto entre os mais depauperados e aqueles que beneficiam das discrepâncias financeiras. A crise económica, a dicotomia entre ricos e pobres, o desemprego, a incapacidade do poder político em defender os direitos dos cidadãos e a indiferença em relação ao outro surgem nas linhas e entrelinhas de uma fita que teima em agarrar-nos pelos colarinhos e despertar o mais nervoso ou sincero dos sorrisos, ou uma inquietação que se apodera do nosso eu. Joon-ho Bong transporta-nos para o interior de um enredo onde a tensão está muitas das vezes latente e os enganos bastante presentes, sobretudo a partir da ocasião em que Ki-woo é convidado por um amigo para dar explicações de inglês a Da-hye (Jung Ji-so), algo que leva o jovem adulto para o interior da mansão dos Park (Sun-kyun Lee e Yeo-jeong Jo), um casal financeiramente abonado.
A pedido do realizador não podemos ou não devemos revelar mais elementos do enredo que envolvam os acontecimentos posteriores à chegada do jovem a esta casa. Percebemos as razões para todo esse secretismo. Os possíveis spoilers certamente diminuiriam a experiência do espectador que visiona o filme pela primeira vez. Nesse sentido, aquilo que podemos dizer é que as circunstâncias, algumas delas forçadas por Ki-woo e a sua família, levam à colocação de um plano em prática onde a perspicácia destes e a credulidade dos Park conduzem a algo que estimula o nosso desejo de perceber como Joon-ho Bong vai desatar o nó que atou com extrema precisão. O cineasta demonstra mais uma vez a sua perícia a reunir géneros distintos no interior das suas obras, mas também uma eficácia a dominar os ritmos da narrativa. Tudo ou quase tudo parece decorrer no ritmo certo, sejam as revelações, as reviravoltas ou o modo como os planos desta família depauperada são colocados em prática. Diga-se que o argumento da autoria do cineasta e de Jin Won Han dá uma enorme ajuda, para além de conceder material de sobra para o elenco sobressair.
Todas as personagens principais de “Parasitas” contam com os seus defeitos e virtudes (umas com mais das primeiras, outras esgueiram-se mais para as segundas), com poucas ou nenhumas a poderem ser consideradas como unidimensionais ou simplesmente “boas” e “más”. Uma das forças do filme está precisamente nessa capacidade de fazer com que percebamos as figuras que povoam o enredo. Podemos identificar-nos mais com algumas, ou simplesmente desprezar outras e os seus actos, mas não deixamos de sentir que existe “massa humana”. De um lado temos os “desempregados”, com Ki-taek Kim (Kang-ho Song), Choong-sook (Hye-jin Jang), Ki-woo (Woo-shik Choi) e Ki-jeong (So-dam Park) a estarem em destaque. Do outro, os “ricos”, em particular, os Park e os seus filhos, a já mencionada Da-hye, bem como Da-song (Hyun-joon Jung), um petiz com uma peculiar habilidade para o desenho e um estranho entusiasmo por índios e cowboys (que remete mais uma vez para as dicotomias e os conflitos entre dois grupos, espelhados através de uma brincadeira aparentemente inocente que contém no seu interior o germinar dessas disparidades). Temos ainda a presença de Moon-gwang Gook, a governanta, uma figura aparentemente cumpridora que esconde alguns segredos e permite a Jung-eun Lee protagonizar alguns momentos dignos de nota.
Como já foi mencionado, os intérpretes têm espaço para se destacarem e atribuírem personalidade e credibilidade às figuras a quem dão vida, sobretudo os elementos que encarnam os “desempregados”. A ingenuidade e a imprudência são alguns dos traços que Woo-shik incute ao seu Ki-woo, um pouco à imagem de So-dam à sua Ki-jeong, com ambas as personagens a serem capazes de cometer os actos mais reprováveis, ainda que compelidas ou estimuladas pelas circunstâncias e pelo contexto que as rodeia. Já Kang-ho explana o seu enorme talento e carisma como Ki-taek, um motorista desempregado, bastante próximo da esposa e dos filhos, que se encontra quase sempre disponível quer para uma boa falcatrua, quer para procurar por uma “silver lining” no interior do caos, enquanto Hye-jin imprime uma faceta entre o duro e o afável à sua Choong-sook. Os Kim habitam no interior de uma casa dotada de parcas condições, humidade e um serviço muito próprio de desinfestação, com o trabalho na escolha e decoração dos cenários a realçar mais uma vez as idiossincrasias entre as duas famílias. Note-se desde logo o plano inicial do filme, com um movimento descendente da câmara a permitir realçar que o espaço habitacional do núcleo familiar de Kim está ao nível do passeio ou mesmo abaixo do mesmo, quase como se fosse uma espécie de cave, escondida de tudo e todos.
Por sua vez, a casa dos Park é marcada pela opulência e aparente segurança. Não faltam câmaras de vigilância, uma garagem, um enorme jardim, dois andares e imensos luxos no interior da mansão de Yeon-kyo e Dong-ik, bem como uma divisão sobre a qual não podemos revelar grandes pormenores. Nas paredes desta habitação, os retratos da família, os quadros que destacam os méritos profissionais do patriarca e um desenho peculiar encontram-se em realce e deixam bem claro não só a personalidade egocêntrica e excêntrica destas figuras, mas também o seu poder financeiro. Yeon-kyo apresenta uma personalidade nervosa e demasiado preocupada com os filhos, bem como uma incapacidade para perceber a realidade que a rodeia. Já o seu esposo é um indivíduo rico e bem sucedido, que conserva uma polidez exterior que é regularmente contrariada por aquilo que realmente sente. Sun-kyun e Yeo-jeong cumprem e convencem, mesmo quando as suas personagens ameaçam resvalar para a caricatura. Não as podemos descrever como boas pessoas, nem como más pessoas, com o maior dos seus pecados a ser acima de tudo o desprezo para com aqueles que as rodeiam, algo que é aproveitado pelo argumento para avançar por essa alienação do ser humano em relação ao outro, em particular, para o desprezo dos mais poderosos em relação aos mais fracos.
Esse choque entre grupos sociais distintos e a problematização sobre quem é o “parasita” do título remete e muito para a universalidade das temáticas desta fita e para questões que atravessam a nossa História. O realizador tem no humor um ingrediente fulcral para abordar esses assuntos, bem como para expor as peculiaridades de uma farsa que apela ao nosso gosto pelo desafio àqueles que representam o poder. Nesse sentido, o riso aqui surge associado ao despertar de consciências e ao questionar e esbater da nossa moralidade, ainda que a seriedade e a violência não sejam descuradas. Com uma banda sonora que tanto é capaz de realçar o tom cómico de alguns episódios pelo contraste em relação aos mesmos como de sublinhar os sentimentos que perpassam um ou outro trecho, “Parasita” exibe uma acutilância na abordagem dos seus temas que apenas é igualada pela capacidade de Joon-ho Bong em dominar os ritmos da narrativa, reunir os diferentes ingredientes que lança para o interior do enredo e despertar a nossa curiosidade em relação à delirante sucessão de acontecimentos.
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Summary
Dotado de um humor negro assinalável e de uma capacidade notável para escancarar as hipocrisias da nossa sociedade, "Parasitas" enfia o espeto na indiferença enquanto efectua uma série de comentários de foro social, sempre com um enfoque no contacto entre os mais depauperados e aqueles que beneficiam das discrepâncias financeiras.
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