Parasitas foi o vencedor deste ano da Palma de Ouro em Cannes e vê Bong Joon Ho regressar à temática do fosso entre os privilegiados e os desfavorecidos num filme que alterna com mestria entre o drama e a comédia.
Depois de Expresso do Amanhã (2013), alegoria de ficção científica com um elenco recheado de estrelas internacionais, e Okja (2017), filme de pendor ecológico pró-animais produzido para a Netflix, Bong Joon Ho arrebatou este ano a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes com Parasitas. De volta à Coreia do Sul, o realizador regressa também à temática da luta de classes no seu país natal, num filme menos bombástico e mais subtil – se bem que não menos óbvio – do que os seus títulos recentes. Parasitas parece ecoar outra estreia sul-coreana deste ano nas nossas salas de cinema, Em Chamas (Beoning, 2018), filme de Chang-dong Lee que, no entanto, tem uma abordagem mais enigmática e contemplativa sobre as mesmas problemáticas. Além do prémio maior em Cannes, tem conquistado um pouco por toda a parte crítica e público. Neste caso, no nosso país, o suficiente para permanecer em exibição dois meses depois da sua estreia, e para se tornar num forte candidato a encabeçar as listas dos melhores do ano.
A família Kim – Ki-taek (Kang-ho Song), a mulher Chung-sook (Hyae Jin Chang), o filho Ki-woo (Woo-sik Choi) e a filha Ki-jeong (So-dam Park) – habita uma minúscula cave, lutando para sobreviver depois de ambos os pais se encontrarem no desemprego. Um amigo de Ki-woo sugere que este assuma o seu emprego como tutor de inglês para a filha da rica família Park, Da-hye (Ji-so Jung). Depois de contratado, os restantes elementos da família Kim apresentam-se progressivamente como trabalhadores qualificados sofisticados, numa golpada com a qual pretendem integrar a vida dos Park, aproveitando a ingenuidade da mãe da família, Yeon-kyo (Yeo-jeong Jo), e da ausência do marido, Dong-ik (Sun-kyun Lee). Ki-jeong apresenta-se como terapeuta de arte e é contratada para ensinar o filho mais novo, Da-song (Jung Hyun-joon). Ki-taek é contratado como motorista. E Chung-sook é contratada para substituir a governanta. Quando o plano parece correr às mil maravilhas, um acontecimento inesperado vai colocar em cheque a relação parasítica que os empobrecidos Kim estabeleceram com os privilegiados Park.
Bong Joon Ho estabelece logo à partida a condição económica e social dos Kim, a viver numa cave, ocasional mictório de bêbados transeuntes. Numa tendência que se manterá ao longo da narrativa, o alternar de diferentes tons é conseguido com mestria, neste caso pincelando de humor uma condição humana iminentemente trágica – veja-se, por exemplo, a cena em que a família mantêm a janela de casa aberta para aproveitar gratuitamente a fumigação no exterior, numa tentativa de se livrar dos percevejos que infestam a habitação –, para mais tarde introduzir elementos que brincam com as convenções do filme de terror. O realizador encadeia então uma sequência propulsiva de acontecimentos em que, qual heist movie, nos presenteia com o processo metódico com que os Kim se imiscuem na vida da rica família Park. Sendo substancialmente mais subtil que Expresso do Amanhã, por exemplo, Parasitas é no entanto contundente no fosso que traça entre os que tudo têm e os que não têm nada – Ki-woo menciona várias vezes como algo “é tão metafórico” –, apontando ao mesmo tempo como tudo não passa de um jogo de aparências, um teatro encenado no dia a dia do qual a memorável vivenda dos Park se tornará o proscénio – parafraseando Chung-sook, o dinheiro é como um ferro de engomar e um rico não passa de um pobre com as rugas passadas a ferro.
Assim que a premissa é cumprida, Parasitas revela algumas surpresas na manga que não estragarei aqui. Ao subverter expectativas no decorrer da trama, Bong Joon Ho tece uma tapeçaria humana em que não há heróis nem vilões de forma óbvia e demarcada. As personagens são ao mesmo tempo desprezíveis e trágicas. As clivagens entre as famílias são fruto de uma sociedade capitalista: o privilégio dos Park é um dado adquirido pelos próprios, e um fruto proibido e apetecido por quem dele não pode desfrutar – e como, em situações de desespero, o instinto parasítico coloca pessoas em igual circunstância em conflito por uma migalha. Recuperando uma linha de diálogo de Expresso do Amanhã, a população carenciada que sonha com uma vida melhor sofre do “optimismo descabido dos condenados”. Na desvairada recta final, Ki-woo pergunta a Da-hye, com quem encetou um namoro, se pertence naquela casa, e a resposta casual desta revela que nunca lhe tinha sequer ocorrido questionar tal coisa. Por muita cumplicidade que se estabeleça entre os elementos das diferentes classes, há sempre uma linha que os separa – algo que agrada a Dong-ik e que este faz sempre questão de sublinhar quando sente essa fronteira em perigo. Além do mais, a vergonha de Ki-taek tem expressão no odor que a sua família emana de igual modo – Dong-ik refere-se ao cheiro do motorista como aquilo a que cheiram as pessoas que andam de metro –, consequência do autêntico “buraco” onde vivem, e onde a porcaria sai literalmente pela sanita na sequência de um temporal – real e metafórico – em que a família passa por um calvário de descida do alto das nuvens – a vivenda dos Park – para os confins do inferno – a sua casa inundada. No momento da verdade, quando a racionalidade é deitada pela janela, será essa repulsa a gota que fará transbordar o copo e pontuar a tragédia.
No final, Parasitas ecoa de forma inesperada com outro filme que marcou 2019: Nós, de Jordan Peele. Também aqui os subterrâneos (neste caso, depois da casa dos Kim, uma outra cave numa outra casa) são utilizados como metáfora derradeira do aprisionamento inescapável dos desfavorecidos. Ki-woo finalmente ambiciona algo mais do que uma vida de pequenos crimes, e define o plano para o conseguir, nomeadamente estudar para merecer a riqueza que nunca antes tinha ousado desejar. A tragédia é que este sonho é uma ilusão. Como o pai lhe tinha dito: “O plano que nunca falha é aquele que nunca chegamos a fazer.”
Review overview
Summary
"Parasitas" é um retrato por Bong Joon Ho em igual medida cómico e trágico do fosso de classes que marca o tempo em que vivemos.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização