A boa notícia sobre as excessivas reviravoltas de “Paraíso Perdido” é que em algumas situações somos surpreendidos pelas mesmas. A má notícia é que essa estupefacção acontece precisamente por não estarmos à espera de algo que ofenda tanto a nossa inteligência. Alguns twists até funcionam, mas a certa altura parece que estamos a entrar no interior de uma paródia cujo objectivo passa pelos personagens terem mais ligações familiares entre si do que as figuras que pontuam a saga “Star Wars”. É certo que o romantismo piroso que permeia o ambiente da fita a espaços ajuda a baixar o nosso pragmatismo no que diz respeito às reviravoltas, ou em relação à redundância de alguns diálogos. No entanto, não ajuda a escamotear a superficialidade com que boa parte das temáticas são abordadas ou o modo pouco harmonioso como uma miríade subtramas e figuras são introduzidas e começam a retirar peso umas às outras. O que não deixa de ser uma oportunidade perdida, ou não estivéssemos perante uma obra que conta no elenco com nomes tão talentosos como Júlio Andrade, Marjorie Estiano, Erasmo Carlos, Seu Jorge, entre outros, embora poucos tenham matéria-prima para trabalhar, com a realizadora e argumentista Monique Gardenberg a apostar no estilo e a deixar regularmente de lado a substância.
“Esqueçam a vida lá fora. Esqueçam quem são ou o que voltarão a ser amanhã e sejam felizes aqui, o Paraíso Perdido, o lugar para aqueles que sabem amar”, diz José (Erasmo Carlos), o dono do clube nocturno do título. Marcado por uma profusão de luzes de cores que sublinham a multitude de sentimentos que percorrem o seu interior, o estabelecimento surge como um espaço onde o tom vermelho tanto simboliza paixão como perigo, enquanto o azul incute uma certa melancolia e o verde traz a esperança de que alguns personagens podem vir a ser felizes. Após a apresentação, logo ficamos perante Eva (Hermila Guedes), grávida e visivelmente ferida, a cometer um assassinato. Pouco depois, o enredo avança no tempo e somos colocados quer diante de um número musical protagonizado por Imã (Jaloo) no clube nocturno do título, quer do polícia Odair (Lee Taylor) a abordar Teylor (Seu Jorge) numa operação stop. Este último menciona que é cantor e convida o agente da autoridade a assistir a um espectáculo no Paraíso Perdido. Pouco depois, encontramos o polícia a deparar-se com uma agressão a Imã nas imediações do espaço do título e a ser contratado por José para ser segurança do seu neto. E assim ficamos desde cedo perante um dos problemas de “Paraíso Perdido”, nomeadamente, a sua incapacidade para deixar os episódios que apresenta respirarem ou ganharem peso no interior do enredo, enquanto somos expostos aos diversos personagens e às diversas ligações que têm entre si.
O cantor travesti Imã é neto de José, filho de Eva, sobrinho de Angelo (Júlio Andrade) e primo de Celeste (Julia Konrad). Esta também é cantora no Paraíso Perdido, é filha de Angelo, está grávida de Joca (Felipe Abib) e pondera abortar após ter sido traída por este. Angelo também é cantor neste espaço nocturno, vive desiludido por ter deixado fugir o amor da sua vida e conta com um feitio romântico. José também ficou sem a companhia da esposa e foi praticamente a “mãe” de Imã e Celeste. Ou seja, quase todos estes personagens foram marcados por perdas ou ausências, tal como Odair, um indivíduo que perdeu o pai quando ainda era criança. Este mantém uma relação de grande cumplicidade com Nádia (Malu Galli), a sua mãe, uma cantora que abandonou o seu ofício devido a ter perdido a audição. Os dois dialogam através de linguagem gestual e exibem um gosto notório pela música, com Lee Taylor e Malu Galli a explanarem com alguma competência a proximidade que existe entre os seus personagens. Já a relação que se forma entre o polícia e segurança com Eva e Milene (Marjorie Estiane), a namorada desta na prisão, raramente funciona. Falta química entre os intérpretes, mas acima de tudo não existe um desenvolvimento credível deste relacionamento, algo que remete mais uma vez para as debilidades do argumento.
Essa palidez do argumento é particularmente visível na exposição e no desenvolvimento pueril da relação de Imã e Pedro (Humberto Carrão), um professor de inglês. Se o primeiro assume o seu interesse no segundo, já este explana inicialmente algum preconceito e vergonha de estar ao lado do cantor. A espaços parece que “Paraíso Perdido” pretende aproveitar os sentimentos contraditórios de Pedro quer para abordar o quanto os preconceitos e o medo dos mesmos influenciam os comportamentos de uma série de seres humanos, quer para expor as atitudes de alguns homens que se envolvem com travestis ou transsexuais mas evitam manter algo sério devido a essa intolerância que se encontra enraizada no seu interior. No entanto, mais uma vez muito é exposto pela rama e de forma extremamente artificial. Ficamos diante de uma série de encontros erráticos entre ambos, quase sempre sem sentirmos as reais consequências dos mesmos, até termos um desfecho que se adequa à atmosfera naïf do filme. Esse ambiente remete também para a personalidade do dono do espaço do título, um veterano que beneficia imenso do carisma de Erasmo Carlos. Diga-se que o intérprete não merecia a introdução de uma revelação perto do final do filme que soa completamente gratuita (não acrescenta nada ao enredo, nem foi minimamente desenvolvida ao longo do mesmo), embora construa um personagem capaz de despertar simpatia.
Quem consegue convencer com alguma regularidade é Júlio Andrade como o romântico Angelo, uma figura que ama a filha e anseia reencontrar o amor da sua vida. Por sua vez, Jaloo e Lee Taylor têm desempenhos relativamente competentes e dinâmicas moderadamente credíveis, com o primeiro a sobressair sobretudo nos momentos musicais. Diga-se que a música é uma das componentes mais relevantes de “Paraíso Perdido”, com os números musicais que decorrem no interior do local do título a dialogarem com o enredo e a permitirem que diversos integrantes do elenco exibam o seu talento para a cantoria, sejam estes Seu Jorge, Jaloo, Erasmo Carlos ou Júlio Andrade. Se estes acertam nas notas musicais, já o argumento não acompanha essa precisão, muito menos o atabalhoado trabalho de montagem. Por vezes a esgueirar-se para o musical, em outras para o drama e romance, ou a piscar muito levemente o olho ao noir e à telenovela, “Paraíso Perdido” procura compensar em estilo e romantismo aquilo que nem sempre consegue oferecer a nível de substância, enquanto aborda assuntos relacionados com as dinâmicas familiares, a violência sobre as mulheres, a identidade, a sexualidade, a orientação sexual, as limitações físicas, o sentimento de perda e a amizade, ainda que de forma muitas das vezes superficial.
Observação: O filme já se encontra disponível na Netflix.
Review overview
Summary
Por vezes a esgueirar-se para o musical, em outras para o drama e romance, ou a piscar muito levemente o olho ao noir e à telenovela, "Paraíso Perdido" procura compensar em estilo e romantismo aquilo que nem sempre consegue oferecer a nível de substância, enquanto aborda assuntos relacionados com as dinâmicas familiares, a violência sobre as mulheres, a identidade, a sexualidade, a orientação sexual, as limitações físicas, o sentimento de perda e a amizade, ainda que de forma muitas das vezes superficial.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização