“Les misérables” começa em euforia, em explosões de sentimentos e sensações desabridas. Se a aurora do enredo é pontuada pela alegria, já o seu término é marcado pelo desalento, por uma violência visceral que se alimenta do ódio e de um sistema político, social e económico ineficiente. As bandeiras francesas aparecem em realce durante o dealbar da primeira longa-metragem realizada por Ladj Ly, a esvoaçarem, a bailarem pelas mãos e a serem exibidas como sinal de orgulho. Esse entusiasmo popular resulta da vitória da França no Mundial 2018. Todos os problemas aparentam ter sido esquecidos, as tristezas deixadas de lado, os ódios apagados pela alegria vibrante proporcionada pelos jogadores da selecção nacional francesa de futebol. O que se segue é uma desconstrução dessa paz aparente, dessa ideia de que os problemas não existem, de que é possível existir união. Tudo é exposto de forma crua, visceral, de modo quase documental, pronto a puxar-nos para o interior dos arredores de Paris, em particular, Montfermell. Somos apresentados aos habitantes deste território, à sua diversidade, às diferentes culturas e tradições que atribuem uma identidade muito própria a um espaço que é quase um protagonista desta película onde não existem heróis e vilões, bons e maus, anjos e demónios. Todos estão numa zona cinzenta, sejam polícias ou moradores. Talvez aquele que esteja mais perto de se encontrar do lado mais próximo da lei é Stéphane Ruiz, um polícia que acaba de integrar a Brigada Anti-Crime de Montfermell.
Damien Bonnard consegue transmitir o mal-estar do seu Stéphane diante dos actos nem sempre recomendáveis dos colegas, bem como expressar a procura deste indivíduo em apresentar uma postura educada e humana diante daqueles que o rodeiam. É quase como um duplo do espectador, alguém que acabou de chegar a um local marcado por regras muito próprias. Este faz equipa com Chris e Gwada, um duo que está há mais de uma década em funções no interior deste espaço intrincado. Alexis Manenti consegue espelhar quer o lado imoral e violento da sua personagem, quer a sua faceta mais leve, sempre sem deixar a sensação de que o seu Chris transgride a lei e o poder inerente às suas funções. Djebril Zonga insere uma mescla de segurança e insegurança ao seu Gwada, um representante da autoridade que cresceu no território. A vida pessoal destes elementos também é exposta, ainda que não desenvolvida. No entanto, permite demonstrar mais uma vez a procura de “Les misérables” em atribuir humanidade às suas personagens. Estamos diante de polícias que recebem mal, procuram estar junto das suas famílias, trabalham em condições intrincadas e são regularmente colocados diante de acontecimentos onde nem sempre é fácil manter a cabeça fria ou tomar a opção mais pragmática. Também cometem erros e actos à margem da lei, que o digam Chris e Gwada, algo que contribui e muito para alimentar a animosidade dos habitantes deste território dos subúrbios de Paris.
Tal como já foi mencionado, Ladj Ly envolve-se pelos meandros deste espaço, pelas suas particularidades e pelas estranhas e frágeis hierarquias que controlam ou potenciam os focos de tensão. Note-se a figura de Le Maire (Steve Tientcheu), um indivíduo imponente que vende productos contrafeitos e procura exercer a sua autoridade junto da comunidade negra, ou Salah (Almamy Kanouté), um antigo presidiário, agora imã, que possui um restaurante e uma postura extremamente contida. Se estes são figuras conhecidas pelo respeito que despertam nos seus interlocutores, já Issa (Issa Perica) é um rapaz com enorme apetência para se envolver em problemas. O episódio em que rouba um leão bebé a um grupo de ciganos é sintomático dessa propensão para não entender as repercussões das suas acções. Acções essas que resvalam regularmente para patamares que desafiam o bom-senso e conduzem a que questionemos a conduta dos polícias e dos habitantes. A violência desperta violência. Alimenta o ódio e alimenta-se do mesmo. “Les misérables” não cai em facilitismos, nem em maniqueísmos. Procura antes questionar o sistema que envolve as personagens que pontuam o enredo, ao mesmo tempo em que as apresenta à luz de uma perspectiva cinzenta onde nada é fácil de explicar e de julgar. Em certa medida, dialoga com “La haine”, uma fita que também se embrenhava pelos subúrbios franceses, bem como com “Les misérables” de Victor Hugo, com quem partilha o título e temas, para além de aproveitar as frases marcantes: “Não há ervas daninhas, nem maus Homens. Há, sim, maus cultivadores”.
A citação está mais do que batida e, muito provavelmente, vão encontrá-la numa quantidade assinalável de textos. É impossível escapar-lhe. Vai à essência daquilo que Ladj Ly explana ao longo da fita. Vai às entranhas de uma obra que aparece como uma experiência intensa. A câmara de filmar, muitas das vezes em movimento, adensa essa visceralidade, essa capacidade de extrair as emoções de cada momento. O último terço é exemplo disso. Também é uma amostra paradigmática da capacidade do cineasta em conciliar os diferentes episódios e trazer para o interior destes um nervosismo que dialoga com o fervilhar dos sentimentos de diversos elementos. Observe-se como o hábito do pré-adolescente Buzz (Al-Hassan Ly) filmar tudo com recurso a um drone tem impacto num episódio-chave ou como a violência e a falta de diálogo conduzem a uma situação devastadora. O território onde estes acontecimentos decorrem é pontuado por abusos da polícia, pobreza, desemprego, crime, diversidade cultural, ou seja, elementos transversais à sociedade francesa. Ladj Ly vai direito ao nervo, extrai interpretações convincentes do seu elenco, aborda os temas com intensidade e precisão, inquieta-nos, questiona-nos, expõe-nos às insuficiências do Estado e às zonas cinzentas da humanidade. Muitas das vezes temos a tendência a ter alguma vergonha ou a demonstrar uma certa insatisfação em relação aos nossos primeiros trabalhos. Ladj Ly certamente não terá esse problema, com “Les misérables” a abrilhantar a página inicial de um currículo que se prevê de enorme sucesso.
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Summary
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização