O fumo serpenteia pelos cenários e pelos rostos durante os diálogos que Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino) e Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi) trocam durante uma série de interrogatórios, quase a trazer à memória os filmes noir e a sublinhar o ambiente de incerteza e mistério em volta do futuro destes dois personagens e do contexto que os rodeia. Uma indefinição que é acompanhada por uma ideia de fugacidade, com a morte a parecer pairar a cada momento da vida destes elementos, um pouco à imagem desta fumaça. É um recurso utilizado por diversas vezes pelo realizador Marco Bellocchio e o director de fotografia Vladan Radovic ao longo de “Il traditore”, um filme inspirado na história de vida de Tommaso Buscetta, um “soldado raso” da Costa Nostra, em particular, do ramo da “velha máfia de Palermo”. Pierfrancesco Favino consegue exprimir a complexidade desta figura, as suas contradições, os seus dilemas, o seu apego à família e o seu lado mulherengo, a sua inteligência e pragmatismo, bem como os seus receios, a sua coragem e o seu carisma, com o intérprete a ter aqui um daqueles papéis que deixam marca quer no currículo, quer no espectador.
Favino tem mérito, mas bem pode agradecer a Marco Bellocchio. Não só pelo argumento, mas também por dar tempo para os personagens “respirarem”. Observe-se os já mencionados encontros entre o mafioso e o juiz Giovanni Falcone, muito marcados por longas trocas de diálogos e um punhado de planos fechados que realçam as expressões dos rostos e os estados de alma. Diga-se que estes trechos permitem ainda dar a conhecer mais sobre os dois personagens, bem como conceder tempo para que se percebam melhor um ao outro e estabeleçam uma relação que tem espaço de sobra para crescer junto do espectador. Alguns dos traços do “chefe dos dois mundos” são expostos logo no início de “Il traditore”, quando somos colocados perante a reunião de membros da “velha máfia de Palermo” e a “nova máfia corleonesa” no interior da mansão de Stefano Bontade (Goffredo Maria Bruno). A festa de Santa Rosália é o evento que decorre em pano de fundo, com os festejos e uma fotografia a não esconderem o mal-estar que contamina um período de aparente acalmia entre as facções rivais.
Marco Bellocchio aproveita os trechos que se desenrolam durante o encontro para apresentar os diversos elementos de cada grupo que vão aparecer com maior ou menor destaque durante a fita, sejam estes Totuccio Contorno (Luigi Lo Cascio), Pippo Calò (Fabrizio Ferracane) ou Totò Riina (Nicola Calì). É durante este evento que Tommaso anuncia que vai sair do país. Parte para o Brasil e, a partir daí, recebe as notícias da morte de diversos membros da “velha máfia de Palermo”. Estes assassinatos são expostos de forma dinâmica e intensa, com um contador por perto a assinalar o número elevado de homicídios enquanto a legenda sublinha o nome daquele que perdeu a vida no trecho que estamos a visionar. É uma maneira rápida e eficaz de “Il traditore” explanar a brutalidade dos acontecimentos e a rapidez com que o grupo da “corleonesa”, de Totò Riina, está a tomar o controlo. A partir do momento em que é detido e extraditado para Itália, o protagonista é colocado perante a possibilidade de colaborar com as autoridades, ou seja, de quebrar o juramento de lealdade eterna que fizera à Cosa Nostra. O que leva alguém a quebrar um juramento? É a esta pergunta que a obra procura responder, sempre sem recorrer a grandes facilitismos, enquanto assume em alguns momentos uma faceta de filme de tribunal.
Fervilhantes, recheados de verve, gestos exagerados, algum humor e violência emocional, os trechos que se desenrolam em tribunal contam no seu interior com uma faceta muito latina, ou, se preferirem, bastante italiana. Gritos, ameaças, diálogos mordazes e revelações fazem parte destes momentos, com a sala de tribunal a transformar-se numa espécie de estádio de futebol onde as claques assumem uma postura bem viva na defesa e apoio da “sua dama”. Os planos bem abertos permitem expor as características deste espaço e o interesse que desperta ou não na opinião pública e na imprensa. Note-se como o piso superior está recheado de visitantes na primeira audiência do superprocesso, a 10 de Fevereiro de 1986, algo que contrasta com o “Processo Andreotti”, em 1996, com o cenário a encontrar-se praticamente despido. “Il traditore” tem nestes trechos alguns dos seus melhores momentos. Observe-se a acareação que coloca lado a lado Tommaso e Pippo Calò, com Favino e Ferracane a sobressaírem e a deixarem patente aquilo que divide estas duas figuras.
Ferracane é um dos vários integrantes do elenco em destaque ao deixar o lado pouco confiável do seu personagem entrar em acção, ou não estivéssemos perante um mafioso que dança ao ritmo do poder. Outro dos elementos em realce é Nicola Calì como Totò Riina, um dos membros mais influentes da máfia siciliana, um indivíduo silencioso e perigoso, que busca o poder e afirmação. Já Totuccio está no grupo rival das duas figuras mencionadas, com Luigi lo Cascio a incutir uma postura leal e impulsiva a este siciliano que decidiu juntar-se a Buscetta e colaborar com as autoridades italianas. Por sua vez, Maria Fernanda Cândido tem pouco tempo em cena, ainda que consiga expressar o papel fundamental de Cristina, a terceira esposa do protagonista, na vida deste último. É um leque alargado de personagens e de acontecimentos aquele que permeia “Il traditore”, com Marco Bellocchio a conseguir exibir o quão demorado foi este superprocesso e a grandiosidade do mesmo não só através da exposição da cronologia dos eventos (com o tempo do cinema a permitir concentrar um período alargado da História recente), mas também a partir da demonstração das especificidades e das mudanças das várias figuras que atravessam a narrativa.
Nem todos os factos são expostos, nem tal seria possível num filme com cerca de duas horas e trinta minutos de duração. O que “Il traditore” consegue é transmitir o ambiente intenso e violento em redor dos acontecimentos, bem como o modo como estes episódios mexeram com a vida de diversos homens e mulheres e o quanto eles conseguiram tocar em diversos pontos da sociedade italiana. Se os julgamentos a espaços contam com um tom quase cómico, alicerçado pela banda sonora e os comportamentos de alguns elementos, isso não implica que seja descurada a faceta negra dos envolvidos. Note-se os diversos flashbacks que fazem questão de colocar o dedo na ferida e explanar a faceta letal dos homens que estão a ser julgados (inclusive do protagonista) e a capacidade dos membros da Cosa Nostra aguardarem pelas suas vítimas. Quem também apresenta talento para esperar é Marco Bellocchio ao conceder tempo e espaço para os personagens falarem, os episódios expostos provocarem impacto, os intérpretes concederem dimensão aos elementos a quem dão vida, enquanto apreciamos todo o cuidado envolvido no guarda-roupa, construção e aproveitamento de cenários, sempre sem perder de vista a força do argumento escrito pelo primeiro com Valia Santella, Ludovica Rampoldi, Francesco Piccolo e Francesco La Licata.
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