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Mulherzinhas

de Greta Gerwig

perfeito

As regras de bom senso e o pragmatismo dizem que não devemos começar um texto com uma citação muito longa. Deixemos estes dois nossos amigos temporariamente de lado para mencionar uma fala proferida por Amy (Florence Pugh), a mais jovem das irmãs March, durante um momento de enorme impacto de “Little Women” (Mulherzinhas): “I’m not a poet, I’m just a woman. And as a woman I have no way to make money, not enough to earn a living and support my family. Even if I had my own money, which I don’t, it would belong to my husband the minute we were married. If we had children they would belong to him not me. They would be his property. So don’t sit there and tell me that marriage isn’t an economic proposition, because it is (…)”. A fala remete para a condição de enorme fragilidade em que se encontra a mulher no período em que se desenrola o enredo, em particular, durante a Guerra da Secessão, bem como para o modo como o casamento era encarado. Diga-se que este trecho dialoga e muito com uma fala proferida por Jo (Saoirse Ronan) durante uma fase mais adiantada da trama: “Women, they have minds, and they have souls, as well as just hearts. And they’ve got ambition, and they’ve got talent, as well as just beauty. I’m so sick of people saying that love is just all a woman is fit for“. Florence Pugh e Saoirse Ronan incutem sentimento e espessura a estes momentos, enquanto Greta Gerwig aproveita o passado para comentar o presente e problematizar o que é ser mulher, a luta destas para se afirmarem no interior de uma sociedade que teima em condicionar a sua acção e o papel do dinheiro para essa afirmação.

Ao terminarmos de visionar a nova adaptação de “Little Women” é particularmente notório que a realizadora e argumentista admira e entende aquilo que está a transportar para o grande ecrã. Essa admiração e esse conhecimento do material de origem contribuem e muito para a assertividade com que a cineasta comenta o livro e o contexto em que este foi escrito e publicado, bem como para desconstruir a sua estrutura e criar um filme dinâmico, dotado de uma enorme sensibilidade e de uma assinalável capacidade de aquecer o mais gélido dos corações. Ao contrário da adaptação realizada por Gillian Armstrong, Greta Gerwig não segue a estrutura de “Little Women” e de “Good Wives”, a sua continuação. Nesse sentido, é o segundo volume que serve de ponto de partida e de chegada, intercalado com episódios do seu antecessor, uma decisão que permite dar a conhecer quer aquilo que une e separa as quatro irmãs, quer o seu amadurecimento ao longo do tempo e as dinâmicas da família March. É uma medida que contribui ainda para que a realizadora capte e transmita a essência da obra literária. Vale a pena realçar que a reverência e o respeito de Greta Gerwig pelo trabalho de Louisa May Alcott é ainda particularmente notório no desfecho da película, quando as limitações que foram impostas à escritora são desnudadas, sempre com algumas doses de humor e sagacidade à mistura.

Esse comentário sobre o desfecho de “Good Wives” realça ainda o cunho feminino e feminista da fita e surge como um dos pontos altos de uma obra que comprova a maturidade de Greta Gerwig como cineasta. E essa maturidade é desde logo visível pela agilidade com que utiliza os pequenos pedaços da vida de Meg (Emma Watson), Jo, Beth (Eliza Scanlen) e Amy, as quatro “mulherzinhas” do título, tendo em vista a dinamizar o enredo e a ir ao âmago do quarteto. Unidos por sentimentos, acontecimentos que rimam ou encontram eco entre si, os fragmentos que compõem a estrutura ziguezagueante da narrativa bailam entre o presente e o passado, a alegria e a tristeza, os sonhos e as desilusões, a vida e a morte. A montagem incute agilidade a estas deambulações pelo tempo. É certo que quem leu o livro (ou os livros) tem bem mais facilidade em situar todos os episódios desde o início, embora Greta Gerwig monte as peças deste puzzle com uma perícia assinalável. Tal como já foi mencionado, esta exibe ainda uma capacidade notória para desenvolver e explorar as dinâmicas das quatro irmãs e espelhar as suas diferenças e o modo como cada uma encara a vida.

Just because my dreams are not the same as yours doesn’t mean they’re unimportant” comenta Meg junto de Jo, uma fala que reflecte algo que está no âmago do filme e do livro, nomeadamente, não exisitir apenas um caminho para a felicidade ou para afirmarmos a nossa personalidade. Emma Watson transmite com competência a sobriedade de Meg, a sua luta para fugir às tentações e o carinho que esta nutre pelo esposo (James Norton). Se esta é a simplicidade em pessoa, já Jo assume a postura diametralmente oposta. O guarda-roupa desta nos trechos do passado não deixa mentir: é a irmã mais intensa e vivaz, mais determinada a encontrar o seu lugar no mundo e a fugir às convenções. A tonalidade vermelha do seu xaile espelha esse seu fervor. Mas é Saoirse Ronan quem tem um papel fundamental para espelhar as características desta carismática aspirante a escritora que surge como um reflexo de Louisa May Alcott e de Greta Gerwig. O olhar da intérprete e as expressões do seu rosto transmitem quer a energia contagiante de Jo, quer a sua enorme sensibilidade e capacidade de emocionar. Observe-se quando encontramos Beth e Jo na praia. O sóbrio e meritório trabalho de Yorick Le Saux na cinematografia reforça o desespero e o pessimismo que permeiam o episódio. As nuvens cinzentas cobrem o céu, os raios solares lançam uma luz que não aquece, enquanto um pedido da personagem interpretada por Eliza Scanlen é contrastado por um breve silêncio e um “don’t say that” que é proferido com uma sinceridade por Saoirse Ronan que contribui e muito para provocar um nó na garganta.

O trecho mencionado permite ainda exemplificar o quão relevante é o trabalho de Greta Gerwig e da sua equipa para a criação de algo que ressoa no interior do espectador. Não é só em situações de maior dramatismo, como a sugerida, mas também em ocasiões de alguma leveza. Note-se a cena do baile onde Jo e Laurie dialogam pela primeira vez. Ambos demonstram uma certa inabilidade para eventos públicos, bem como um talento para dançar deveras peculiar. E é precisamente o momento em que estes dançam que fica na memória, seja pela banda sonora, pelos gestos desconjuntados dos dois jovens, ou pela enorme química dos dois actores. Timothée Chalamet tem um papel que parece escrito para si, ainda que as características da personagem estejam todas no livro originalmente publicado em 1868. O intérprete expõe com enorme acerto quer faceta solitária, a elegância e o romantismo deste vizinho das quatro irmãs, quer o lado mais desiludido deste adolescente que vive com o avô (Chris Cooper). As dinâmicas entre Saoirse Ronan e Timothée Chalamet são convincentes, com ambos a evidenciarem a cumplicidade que existe entre os seus personagens. A irreverente aspirante a escritora foge regularmente às convenções e às “boas maneiras”, ao passo que Beth exibe uma postura mais tímida, algo demonstrado por Eliza Scanlen, com a actriz a incutir uma faceta reservada a esta jovem que gosta de tocar piano e tem na primeira a sua confidente e protectora.

Se Meg, Jo e Beth apresentam no filme as mesmas características do livro, já Amy ganha mais espessura, que é como quem diz, complexidade. Florence Pugh arrasa no papel, seja a expor o lado mimado da sua personagem, ou as suas inquietações e paixões, ou o gosto que a mais nova das “mulherzinhas” tem pela pintura. A intérprete protagoniza alguns dos momentos mais cómicos, mas também dos mais dramáticos, sendo a par de Saoirse Ronan um dos grandes trunfos do filme. Outro dos trunfos é o cuidado guarda-roupa, pronto a espelhar os traços da personalidade das personagens, a sua condição financeira e o aroma de uma época, um pouco à imagem da decoração dos cenários. Note-se a sensação de vazio e melancolia que o quarto de Beth adquire em determinado ponto da película, ou o calor emanado pela sala de estar dos March, pontuada por uma decoração acolhedora e uma lareira que aquece os corpos e as emoções. A cinematografia também contribui para esta sensação de calor ou frieza. Observe-se como os trechos do passado são quase sempre permeados por tons e uma iluminação mais quentes, enquanto o presente é marcado por uma tonalidade mais azulada e melancólica, fruto de um certo amadurecimento das protagonistas e das contrariedades que estas encontram. Deste núcleo familiar dos March conhecemos ainda “Marmee”, a mãe das quatro jovens, interpretada por uma credível Laura Dern. Esta deixa patente a postura conciliadora e bondosa da sua personagem, uma figura que lida com a ausência temporária do esposo (Bob Odenkirk).

Dos elementos secundários é impossível não destacar ainda Mr. Laurence (Chris Cooper), a tia March (Meryl Streep) e Friedrich Bhaer (Louis Garrel). Se Chris Cooper insere um lado bondoso e correcto ao avô de Laurie, já Meryl Streep sobressai ao imprimir uma faceta deliciosamente preconceituosa, conservadora e pragmática a esta figura vetusta que encara o casamento como um contrato. Por sua vez, Louis Garrel deixa em realce a sinceridade e a faceta amigável de Friedrich, um professor que forma uma certa proximidade com Jo. Greta Gerwig aproveita as potencialidades do elenco, enquanto deixa o espectador diante de vários episódios marcantes na transição das irmãs March para a idade adulta. Aquela que mais procura a independência financeira e conseguir rendimentos é Jo, uma figura que tem na escrita a sua arte e um meio de tentar contrariar as armadilhas de uma sociedade patriarcal e de ajudar a sua família. Note-se como inicialmente publica as suas obras com recurso a um pseudónimo, tendo em vista a esconder a sua identidade, algo que remete para o modo pouco positivo como a sociedade da época encarava que as mulheres ganhassem a vida a escrever. Diga-se que essa prática era bastante comum na Inglaterra Vitoriana, onde autoras como Jane Austen, ou as irmãs Brontë tiveram inicialmente de publicar os seus livros sob pseudónimo, tal como Mary Ann Evans (mais conhecida como George Eliot), entre outros exemplos que remetem e muito para as dificuldades que as mulheres encontraram não só para exercerem uma profissão, mas também para ganharem dinheiro.

Em “A Room of One’s Own”, Virginia Woolf salienta que “A woman must have money and a room of her own if she is to write fiction.” Comenta também “(…) because, in the first place, to earn money was impossible for them, and in the second, had it been possible, the law denied them the right to possess what money they earned. It is only for the last forty-eight years that Mrs Seton has had a penny of her own.” A primeira citação é uma das frases mais conhecidas deste livro imprescindível, sendo igualmente aplicável para o cinema. No caso do segundo trecho, é praticamente impossível não recordar a fala de Amy citada no início do texto, com os temas relacionados com a mulher, o dinheiro, o trabalho e a independência a encontrarem diversos paralelos entre as duas obras. Durante a participação num painel onde também estiveram presentes outros argumentistas, a realizadora salientou precisamente isso: “The one that jumped out at me page after page was this book is about money and authorship and ownership and women and art and money“. Ou seja, uma série de assuntos que lhe são caros. Claro que podemos dizer que Greta Gerwig é bastante privilegiada em relação a outras realizadoras. Tem estatuto, dinheiro e talento. E é precisamente isso que torna a sua voz bem mais audível. Greta Gerwig tem “um quarto”, que é como quem diz, independência e voz para criar, divulgar e defender o seu filme, bem como talento para adaptar de forma muito própria um clássico da literatura e prestar uma emocionante homenagem à sua autora. Sensível, doce, capaz de despertar um sorriso com a mesma facilidade com que destrói os nossos sentimentos, “Little Women” é daquelas obras que contam com enorme coração, que conquistam facilmente um lugar na nossa memória e a deixam em evidência as qualidades da sua realizadora.

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Summary

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  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
5 10 perfeito

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