Com o sertão brasileiro filmado como se fosse o seu Monument Valley, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles trazem, em Bacurau, uma distopia que é afinal um retrato doloroso de algo bem real.
Reputado com o Prémio do Júri do Festival de Cannes deste ano, e com alguma controvérsia política no seu país de origem, o brasileiro Bacurau é um daqueles filmes a que é impossível ficar indiferente.
Escrito e realizado por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, com toques de Cinema Novo e um olhar especial para o sertão brasileiro – são lindíssimas as imagens das paisagens naturais que o filme nos dá – Bacurau apresenta-se como uma distopia, mostrando um cenário em que algumas regiões do mundo passam por privações, em grande isolamento, e dependente de entregas (de água potável a vacinas) quase voluntárias, e muito perigosas de conseguir, sem estradas, por entre acidentes e sob o medo de bandos de malfeitores.
Mas se, no papel, parece que estamos num cenário digno de Mad Max, na tela rapidamente nos abstraímos do contexto distópico, e percebemos que não há assim tanta diferença para o que pode ser a realidade de algumas regiões pobres do Brasil (e não só). Sob essa máscara de estranheza ficcional, cedo começamos a integrar-nos no fictício vilarejo pernambucano com nome de pássaro, onde todos se conhecem e compartilham tristezas e alegrias, dependendo do pouco que cada um tem para que todos sobrevivam, e desconfiando muito de forasteiros e autoridades, as quais estão ausentes, salvo em comunicados em que anunciam a busca de um bandoleiro local, por sinal respeitado em Bacurau.
Mas como se essa estranheza não nos incomodasse, uma série de crimes inesperados começa a acontecer, e cedo percebemos que têm origem num grupo de estrangeiros, uma espécie de supremacistas brancos que vêm matar por desporto, como quem caça animais selvagens. A partir de então toda a lógica e narrativa desaparecem, e entramos num escalar de violência tarantiniana, uma violência catártica em que toda a vila embarca, como que marcando uma posição que é apenas “também somos gente, e temos direito a viver”.
É difícil não ver no filme uma denúncia das desigualdades em que o Brasil vive, falta de condições, desrespeito pela cultura (veja-se a sequência em que livros são despejados por um camião), discurso violento e crispação de ódios motivada por quem quer segregar, e isso – passe o tal contexto distópico – é bem claro e já assumido por muita gente que vai discutindo o filme no Brasil. Afinal, bastaria os discursos em Cannes de Kleber Mendonça Filho e de Sónia Braga, aquando do anterior Aquarius (2016) para se perceber ao que vêm, num filme pensado em pleno regime Temer.
Com Sónia Braga no papel da matriarca Domingas, a médica e espécie de líder não assumida de Bacurau, Barbara Colen como Tereza, a jovem regressada da grande cidade, e cujo olhar mais inocente guia o nosso, e Udo Kier como o frio e calculista líder dos invasores, Bacurau é assim uma espécie de western distópico dolorosamente realista, que veio para trazer sangue, o da história e o metafórico para quem percebe onde o filme quer chegar.
Review overview
Summary
Sob o disfarce de distopia, Bacurau é um western sertanejo, no qual Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles conseguem uma obra poderosa de denúncia das desigualdades do Brasil e situação política actual.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização