Numa lição de que o verdadeiro terror acontece no realismo das situações quotidianas, e não tanto nas histórias fantasiosas de monstros impensáveis, Steven Soderbergh traz-nos Unsane, o herdeiro do seu filme de 2013, Contágio.
Steven Soderbergh, o tal realizador que há meia dúzia de anos anunciou que não voltaria mais a realizar para cinema, está de volta com mais um thriller centrado na condição e paradoxos humanos (e de modo velado: problemas existenciais e conflitos de sexualidade), que têm afinal marcado a sua carreira. Tudo isso está presente no recente (e ainda sem estreia prevista para Portugal) Unsane, a nova aventura cinematográfica de Soderbergh que se pode considerar um filme de terror, mas um terror que foge às secas e gastas receitas do cinema actual.
É que Soderbergh – numa decisão aqui aplaudida – percebeu há muito que o terror não tem de ser o perpetuar de clichés que passam geralmente por histórias de fantasmas, zombies e vampiros. Nem tem de ser regado com sangue em cenários de violência exagerada. O verdadeiro terror é aquele que é mais palpável ao cidadão comum, aquele que nos pode acontecer, sem fantasia nem exercícios mentais exagerados. Exemplo é o seu filme de 2011 Contágio (Contagion), que mostrava como uma doença contagiosa de alta perigosidade rapidamente pode alastrar com consequências trágicas. É esse jogar com “e se?…” dentro de um realismo perfeitamente plausível que mais nos assusta de modo permanente, bem para lá dos efeitos cénicos, dos jump scares e dos efeitos especiais de maquilhagem que parecem ter tomado o cinema de terror por completo.
Na linha realista do citado Contágio, Unsane fala-nos da jovem laboriosa Sawyer Valentini (Claire Foy, nossa conhecida das séries britânicas The Crown, Wolf Hall e Little Dorrit) que, a braços com problemas de ansiedade advindos de uma experiência traumatizante com um perseguidor, dá por si internada, por engano, numa entidade psiquiátrica, que talvez se aproveite de pessoas inocentes, para sacar alguns dólares dos seus seguros de saúde.
Num processo perfeitamente kafkiano, Sawyer vai ver-se cada vez mais enredada na teia de que quer sair, já que tudo o que faz para provar que não pertence ali, parece tornar-se mais uma evidência de que ali deve permanecer, a ponto de nós próprios perguntarmos se não é mesmo ela que está errada e o resto do mundo certo.
Para acentuar esse carácter opressivo, e por vezes claustrofóbico – o ambiente de Voando Sobre Um Ninho de Cucos (One Flew Over the Cuckoo’s Nest, 1975) de Milos Forman, vem-nos facilmente à memória – Soderbergh filma de modo pouco convencional, usando telemóveis (iPhone 7-Plus), ângulos baixos, com câmaras posicionadas demasiado próximas dos personagens, como câmaras escondidas (ou esquecidas) que vão dando imagens que não era suposto serem filmadas, em cores saturadas como seria de esperar de gravações caseiras, como se tudo fosse um documentário mal encenado.
Talvez o desenlace não seja o ideal já que o esperado twist chega demasiado cedo, mostrando que a tal ambiguidade sobre o estado de Sawyer não se justifica. Sai a ambiguidade, aumenta o perigo, na tal receita hitchcokiana de nos dar mais que aos personagens, os quais se tornam marionetas que nós vemos serem manipuladas para nosso desconforto. O resultado é um suspense que incomoda, e lança sempre a pergunta: será assim tão difícil acontecer connosco?
Quanto a Soderbergh, rendido aos telemóveis para mostrar que é a arte de contar histórias, e não a tecnologia, que o cativa, prepara já mais um filme captado do mesmo modo: High Flying Bird, que tem como pano de fundo a NBA.
Review overview
Summary
Entre um suspense hitchockiano e o pesadelo kafkiano, Soderbergh mostra-nos como é possível fazer um filme em que o verdadeiro terror não advém de monstros e assombrações, mas de situações quotidianas que desejamos que nunca nos aconteçam.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização