O cinema de animação permite uma grande multiplicidade de ferramentas para que um realizador possa contar a sua história. As mais variadas técnicas, desde o stop-motion ao 3D, passando por colagens ou o tradicional 2D feito à mão, tornam este no género cinematográfico que permite uma maior elasticidade narrativa. Uma personagem pode ser desenhada de mil e uma maneiras, sendo que, como todos sabemos, a animação pode revelar outros caminhos para essa personagem que os filmes com “gente de carne e osso” não conseguem desbravar.
Funan, a primeira longa-metragem escrita e realizada por Denis Do, tem os seus méritos sociais, filosóficos e simbólicos. O filme parte da história real vivida pela família do seu autor, família essa que vemos a tentar escapar das garras da revolução dos Khmer que provocou a guerra civil no Cambodja. O ponto mais belo da história desta longa está mesmo na protagonista, a mãe que quer salvar o filho (irmão mais velho de Denis Do, que ainda não era nascido nesta altura), levado pelo novo regime tirânico para um campo especial para crianças.
Denis Do faz um filme que, acima de tudo, é o relato de uma família a sobreviver no meio do caos. A opressão de uma nova ideologia que faz lavagens ao cérebro ao povo é não só o testemunho de um período conturbado da história do Cambodja, como também uma prova de que há alguns elementos da História da humanidade que, infelizmente, tendem a repetir-se década após década.
Com um óptimo elenco, encabeçado pelos célebres Bérénice Bejo e Louis Garrel, Funan tem, no seu realismo social, algo que podemos louvar: não há nunca a intenção do realizador em menosprezar as suas personagens, em torná-las em simples “bonecos” (no sentido figurado, claro) que representam um “papel” fixo: não são bons nem maus, e mesmo nas figuras com quem simpatizamos (a mãe, o pai, a criança) poderemos encontrar motivos para desconfiar da sua ética.
Não é uma obra que nos queira deixar confortáveis, como se usássemos a nossa condição de espectadores ocidentais para olhar para os “coitadinhos”, mas que nos quer fazer pensar em todas as coisas que, neste ou em qualquer país, continuam a ter uma enorme probabilidade de voltar a acontecer: e nestes tempos em que extremismos de um lado e de outro regressam com força, vale a pena reflectir no que Funan nos propõe nesse campo.
Mas no início referi a variedade de formas e feitios que uma animação pode dar a uma história. É mais provável que nos sintamos afectados, ao ver um filme de animação, mais pela sua forma do que pelo conteúdo, isto se procurarem, como eu, que a animação seja utilizada em prol do filme. Infelizmente, e é esta a grande pecha de Funan, a animação de Denis Do é tão sensaborona e estéril que não percebemos a razão para que a animação tenha sido escolhida. Segundo o que contou o realizador, foi uma alternativa à imagem real que ficava mais dispendiosa – será a primeira vez que vejo alguém dizer que a animação é mais barata, mas filmar com actores nos locais originais da história não seria uma tarefa propriamente fácil.
No entanto, e apesar deste constrangimento e do trabalho de Do no campo da animação (desde o início desta década que trabalha no departamento de arte e animação de várias séries e filmes), não parece ter havido, da sua parte, alguma preocupação em pegar no guião original e convertê-lo para as potencialidades da animação. A transposição a papel químico da história para um estilo tão despojado de qualquer intenção estética pode não afectar o poder emocional da história (até porque, se há quem ame este filme, isso se deve principalmente a esse factor), mas dá, para mim, um interesse menos a Funan. Uma história socialmente importante não faz um grande filme, se todos os seus outros elementos não jogarem a seu favor.
Além disso, mesmo a estrutura da história (se bem que acredite que ela não tenha sido excessivamente romanceada) acaba por se tornar tão cliché na sua intenção de ser “baseado numa história verídica” que acabamos, em partes, por perder algum do interesse em relação às personagens. Mas isso não foi tão forte, para mim, como o tal problema da falta de alguma ideia visual que justificasse a animação. Parece talvez um preciosismo da minha parte. Mas como acredito que a animação pode, se bem usada, dar mais poder a um cineasta do que a imagem real, fico com pena quando um filme como Funan não vai mais além do que isto nesse nível. Porque, neste filme bom e relevante, poderia estar antes um grande filme e um marco contemporâneo para o cinema de animação.
Review overview
Summary
Baseado na história verídica da família do realizador, Funan é um filme realista que perde pontos pela falta de interesse inerente à sua animação.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização