Darren Aronofsky é um dos mais interessantes realizadores norte-americanos da actualidade. Depois da estreia, em 1998, com um filme de baixo orçamento recheado de ideias visuais e temáticas — o oblíquo thriller religioso e científico Pi —, o realizador abalou quem teve a felicidade (ou o infortúnio) de ver A Vida não é um Sonho dois anos depois, um festim visual e sonoro que é um assalto aos sentidos do espectador que assiste à descida ao inferno de personagens vítimas dos seus próprios vícios e que contou com uma interpretação central avassaladora de Ellen Burstyn, nomeada para o Óscar de Melhor Actriz. As suas ambições para o filme seguinte foram contidas pelo orçamento reduzido finalmente angariado e o épico planeado O Último Capítulo estreou finalmente em 2006 numa escala mais reduzida, sendo, na realidade, uma pérola intimista e desafiante que atravessa gerações, bem como mito e realidade, traduzindo no ecrã algumas das mais prementes ansiedades humanas e a luta do Homem na procura do sentido da vida. Este foi o projecto em que Aronofsky conheceu a actriz Rachel Weisz, futura mulher e mãe do seu filho — apontamento que será relevante no enquadramento de mãe!. O Wrestler apareceu em 2008 como um filme algo atípico na sua filmografia. Ainda assim é uma história de obsessão e monomania que fez chegar o cinema de Aronofsky a uma maior fatia do público, valendo a Mickey Rourke uma nomeação para o Óscar de Melhor Actor. Na sequência deste reconhecimento, Cisne Negro foi a prova que o seu autor não se renderia totalmente ao cinema mainstream, sendo, no entanto, o encontro perfeito entre as preocupações comerciais deste e as obsessões temáticas e artísticas daquele. Esta fantasia negra de obsessão e rendição à loucura, reminiscente da atmosfera do género giallo italiano, valeu a Natalie Portman o Óscar de Melhor Actriz, confirmando o talento de Aronofsky no trabalho com os seus actores. Noé, o épico de 2014 que oferece uma perspectiva judaica sobre uma história bíblica, volta a ser uma história sobre convicção e obstinação, mas é até hoje o único tropeção numa carreira acima da média — apesar de estar longe de ser um mau filme. O que torna evidente é o interesse do realizador na exploração temática da religião, mais particularmente na sua expressão cristã.
Uma das maiores críticas que têm sido apontadas a Darren Aronofsky a propósito de mãe!, o seu mais recente filme, é a abertura e candura do realizador nas entrevistas promocionais em relação à sua inspiração, processo de trabalho e significados contidos na sua obra, mesmo ainda antes da estreia do filme. O próprio tem afirmado que escreveu o argumento em apenas cinco dias num estado de inspiração febril, adiantando pistas sobre as alegorias e metáforas no centro da sua película difícil e desafiante. Se é interessante conhecer a génese de uma obra, também é verdade que ela tem de existir por mérito próprio e suponho que cada um vai ter a sua opinião diferente sobre a necessidade de um autor levantar o véu sobre a sua arte. O que é de louvar é a existência de um filme como mãe! no contexto de uma produtora de peso de Hollywood. O problema é que, apesar de a Paramount ter financiado este projecto muito pessoal de Aronofsky, não soube como promover o resultado final. Toda a campanha de marketing, em vez de apostar numa audiência adulta de nicho que poderia estar interessada no filme que realmente é, tem-no promovido como uma banal fita de terror, apoiando-se na força dos seus protagonistas principais, Javier Bardem e, especialmente, Jennifer Lawrence. É verdade que os vários cartazes fizeram um bom trabalho de invocar diferentes temas e influências, sendo eficazes no espicaçar da curiosidade. Mas os trailers são terrivelmente enganadores. O desligamento entre o filme prometido e o que as pessoas encontram é de tal forma que a produtora sentiu a necessidade inédita de emitir um comunicado de imprensa em defesa do filme.
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Uma sinopse possível de mãe! é a seguinte: um casal vive numa casa de campo isolada. O homem é um aclamado poeta afligido por um agudo bloqueio de escritor. A mulher, que anseia por uma existência tranquila a dois, dedica-se a renovar o lar, com o qual demonstra partilhar uma estranha e empática sincronia. A relação entre os dois é carinhosa, se bem que um pouco distante, porém ela demonstra-se solidária e encorajadora perante as dificuldades de inspiração do marido. Um dia, um estranho bate à porta à procura de um quarto. O homem oferece estadia prontamente, apesar da relutância da mulher. Quando, no dia seguinte, a esposa do estranho aparece à porta com intenções de permanecer, a mulher começa a ficar cada vez mais frustrada por ver o seu lar invadido por estranhos que colocam em causa a tranquilidade e a sua vivência idílica.
É natural que mãe! seja uma experiência frustrante para uma fatia do seu público. Este é um filme de terror psicológico que não resiste a uma leitura literal e que obriga o espectador a procurar significados e pistas para descodificar as suas metáforas e alegorias. E, a verdade, é que elas não são subtis nem se limitam a uma só leitura, o que pode funcionar como mais uma camada alienadora. O trabalho de câmara é sufocante. Mais de noventa por cento das suas cenas são uma variante destas três situações: um grande plano de Jennifer Lawrence; um grande plano por cima do ombro de Jennifer Lawrence; ou o seu ponto de vista. Isto coloca-nos obrigatoriamente numa posição de empatia com a sua personagem: é através dela que temos a perspetiva dos acontecimentos. Aliada a isto, a ausência da banda sonora e um trabalho incrível de engenharia de som intensifica a experiência e aumenta a tensão. A imprevisibilidade da narrativa — um dos seus maiores trunfos — é o derradeiro contributo para uma experiência enervante. O espectador, como a personagem de Lawrence, é atirado para um permanente e desconcertante estado de incredulidade perante os acontecimentos a que assiste.
Aronofsky parece ter aqui um acto de purga muito pessoal. Sem ter a pretensão de julgar o homem, nem de misturar o trabalho público do artista com a sua vida privada, é incontornável — e algo perturbante — a semelhança da figura que aparece na abertura do filme com Rachel Weisz, entretanto separada do realizador. Torna-se, assim, inevitável ver no poeta em crise no centro da narrativa uma expressão do próprio autor a debater-se com os fantasmas pessoais da sua domesticidade e, quem sabe, da impossibilidade de conciliação de uma vida a dois ou, em última instância, do seu próprio divórcio. A personagem de Bardem, carinhoso e atento, é, também, egocêntrico e tóxico na relação com a sua musa. Por um lado, esta não parece ser suficiente para motivar a sua arte, por outro, a sua necessidade de afirmação pessoal procura reconhecimento no mar de estranhos anónimos que adoram o seu trabalho. É o culto do artista que se expõe aos holofotes da fama, independentemente das consequências para quem é próximo de si. A visão do artista como um vampiro do amor que lhe é dirigido, num processo de cíclica destruição de quem decide amá-lo, parece revelar uma luta pessoal do autor com uma vertente mais obscura da sua personalidade.
O incrível é que esta é apenas uma das leituras possíveis. Independentemente de muitas outras que cada espectador poderá tirar em virtude da sua experiência pessoal, parece óbvio que Aronofsky tem uma posição bastante vincada em relação à religião, em geral, e ao cristianismo, em particular. Paralelamente às suas preocupações pessoais, desenha uma alegoria religiosa onde não faltam Adão e Eva, criada da costela de Adão, bem como Caim e Abel. Para o autor, Deus é uma criatura caprichosa que criou o Homem para que este o pudesse adorar. A Mãe Natureza torna-se assim uma vítima dos excessos do homem numa versão condensada e horrífica da história do mundo e do papel da religião no desenrolar dos acontecimentos. É uma visão panteísta e pessimista que, ao invés de debater sobre a existência ou não de Deus, afirma que, independentemente disso, o que é feito em seu nome atropela aquilo que realmente deveria ser amado e preservado: o nosso planeta, o nosso lar, a natureza, a nossa primordial mãe!
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Independentemente da clareza ou nebulosidade destes (ou de outros) significados, mãe! é uma viagem atribulada para o espectador. Muito se falará das mazelas físicas de Jennifer Lawerence na rodagem do filme, mas a verdade é que a fabulosa actriz carrega o filme às costas, sofrendo na pele o que nós sofremos apenas por aproximação. É extraordinária a forma como a sua expressividade nos orienta e informa emocionalmente, mesmo quando tudo descamba num gigante pesadelo metafórico. Bardem é perfeito no papel do marido, oscilando drasticamente entre a empatia e o capricho mal disfarçado. Os veteranos Ed Harris e, especialmente, Michelle Pfeiffer não podiam ter sido melhor escolhidos no papel do casal que começa a invasão do lar, aproveitando claramente as personagens sumarentas desenhadas por Aronofsky.
É possível que mãe! venha a ser um fracasso comercial, muito por culpa da forma como foi publicitado. E é possível que nunca venha a ser um filme unânime. Uma coisa é certa, este é um bom teste para identificar um verdadeiro fã de Darren Aronofsky, pois é um dos seus trabalhos menos destilados e apurados. É, pode-se dizer, Aronofsky em estado bruto e visceral. E, goste-se ou odeie-se, está aqui um dos acontecimentos cinematográficos do ano.