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Linha Fantasma

de Paul Thomas Anderson

bom

Linha Fantasma é a anunciada interpretação final de Daniel Day-Lewis, mas é também o mais recente filme de Paul Thomas Anderson, um dos mais importantes cineastas norte-americanos da sua geração.

 

Paul Thomas Anderson tem sido apontado como um dos mais importantes cineastas norte-americanos da sua geração. A sua estreia atrás das câmaras em 1996, Passado Sangrento, fez com que o seu realizador fosse confundido pelos próprios produtores como sendo um subproduto da escola Quentin Tarantino, logo desmentido nos anos que sobravam do século XX pelos épicos caleidoscópicos Jogos de Prazer e Magnolia. Estes filmes de grande fôlego denunciaram uma filiação mais próxima a Martin Scorcese e Robert Altman do que à desconstrução pop e auto-referencial de Tarantino. Embriagado de Amor, o seu musical sem canções de 2002, parece ter encerrado um ciclo de forma inesperada. A nova encarnação de Anderson pode ser marcada pelo início da colaboração na banda sonora com Jonny Greenwood, e Haverá Sangue, um dos primeiros grandes filmes americanos do novo milénio — e a primeira colaboração com Daniel Day-Lewis —, continuou a tendência de Anderson para retratar personagens obsessivas, apesar da mutação estilísitca. Esta tendência manteve-se com The Master – O Mentor, título em que a visceralidade da sua obra é substituída por um calculismo e uma frieza muito Kubrickianos. O seu cinema tornou-se mais hermético, cerebral e desafiante. Foi apenas natural que o seu filme seguinte fosse Vício Intrínseco, um filme paranóico sobre o processo da perda da inocência e do desabar do sonho americano durante a década de setenta adaptado de um romance de Thomas Pynchon — o primeiro em que adaptou material previamente existente.

Apesar deste percurso (nem sempre unânime, é justo apontar), a estreia de um novo filme de Paul Thomas Anderson deveria ser um acontecimento (mas não o é, mais uma vez em benefício da verdade). Linha Fantasma, novamente um argumento original de Anderson, volta a juntar o realizador com o actor ermita Daniel Day-Lewis, e tem sido mais falado por ser o anunciado título derradeiro da filmografia deste, do que por qualquer outro motivo. Mesmo as vozes críticas que têm louvado o filme, bem como a meia-dúzia de nomeações aos Óscares, parecem uma mera formalidade inevitável perante a aura de génio que antecede o autor. Realizando pela primeira vez fora dos Estados Unidos da América, Anderson inspira-se em Alfred Hitchcock — especialmente em Rebecca, de 1940 — para desenhar meticulosamente um requintado e subtil filme de época com travo de drama familiar, mistério gótico e comédia muito negra, focando-se num estilista da alta sociedade da Londres da década de cinquenta e na relação atribulada com a sua musa.

O famoso estilista Reynolds Woodcock, Daniel Day-Lewis numa interpretação contida nos antípodas de Daniel Plainview, cria vestidos e roupas para membros da alta sociedade. Carismático e genial, é também, no entanto, obsessivo e controlador. A irmã Cyril, a actriz britânica Leslie Manville, gere o dia-a-dia da luxuriante casa de moda. Reynolds é influenciado em larga medida pela irmã, bem como pela memória da falecida mãe. Numa estadia no campo, conhece Alma, a luxemburguesa Vicky Krieps. Os dois desenvolvem um relacionamento em que Alma serve de musa e amante para Reynolds. Ao poucos, Alma ganha o respeito de Cyril, mas o estilista não tolera desvios às suas rotinas diárias, dispondo de Alma conforme lhe convém sem se comprometer e envolver emocionalmente. Mas Alma está determinada a conquistar o afecto de Reynolds, e irá tentá-lo de formas inesperadas…

Reynolds Woodcock encontra em Alma a sua musa — será coincidência o facto de que Alfred Hitckcock era casado com Alma Reville? Mas em Linha Fantasma, o espectro que assombra o passado de Reynolds não é o de nenhuma das suas relações passadas, mas sim o da sua mãe. Os esqueletos no seu armário são os vestidos moldados à figura de todas as anteriores musas, facilmente descartadas, mas a sua fobia ao compromisso vem do vazio que a morte da mãe deixou no rapaz a quem ensinou a sua arte e ofício. Em certa medida, Cyril é um elo de ligação com essa memória, e com a dependência do estilista de uma figura maternal de forte personalidade e carácter. Alma está destinada a ser mais um glorificado manequim humano pronto a ser descartado.

Mas Alma decide que tem uma palavra a dizer sobre a sua relação com Reynolds. Este determina que o seu sucesso e imagem dependem da integridade da sua condição de solteiro, rejeitando intimidade em detrimento dos seus rituais austeros, o que leva a que Alma cozinhe literalmente a solução para os seus problemas: é apenas na fraqueza de Reynolds que pode conquistar o seu afecto e tornar-se imprescindível na sua vida. O instinto protector e maternal de Alma conquistam o estilista e abrem a porta para uma relação tóxica de co-dependência que flutua em função dos ocasionais actos voluntários que colocam a sua saúde em causa.

Anderson mimetiza a austeridade e o formalismo dos métodos de Reynolds com uma encenação metódica e calculada, pontuada constantemente pela música elegante de Greenwood e uma fotografia clássica da autoria do próprio — ao contrário do que acontece habitualmente, não há director de fotografia creditado. Os movimentos de câmara, bem como a edição, são refinados e precisos e, tal como Alma acusa Reynolds a certa altura, encerram uma artificialidade claustrofóbica que nos mantém afastados emocionalmente. Este é um cinema cerebral e formal, sem óbvias preocupações em invocar reações emocionais. Linha Fantasma está assim mais perto de The Master – O Mentor do que qualquer outro título da carreira de Anderson. Curiosamente, tal como acontecia nos últimos dois títulos do realizador, em que nos foram reveladas durante a promoção inúmeras cenas cortadas ou alternativas, também no trailer de Linha Fantasma vislumbramos pelo menos uma cena que se desenrola de forma diferente no decorrer da longa-metragem. Digo que isto é curioso porque, apesar de aparentemente desenhado com regra e esquadro, parece haver lugar nas filmagens recentes de Anderson algum espaço para a experimentação e o improviso.

É inegável o rigor formal de Anderson e a sua dedicação a uma estética clássica em vias de extinção — tal como Reynolds perde a cabeça com o rumo do seu ofício, à procura de satisfazer uma necessidade superficial pelo chique, também o realizador parece ter relutância em abandonar um certo classicismo cada vez mais em desuso. É pena que o faça apontando apenas ao cérebro, descurando o potencial de envolver emocionalmente o espectador. Mesmo que Linha Fantasma se venha a descoser a posteriori, revelando segredos nele escondidos, e revelando-se como a grande obra-prima que não aparenta ser ao primeiro contacto.

Review overview

Summary

É inegável o rigor formal de Anderson e a sua dedicação a uma estética clássica em vias de extinção. É pena que o faça apontando apenas ao cérebro, descurando o potencial de envolver emocionalmente o espectador.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
3 10 bom

Comentários

Written by António Araújo

Cinéfilo, mascara-se de escritor nas horas vagas, para se revelar em noites de lua cheia como apaixonado podcaster.

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