IndieLisboa 2016 – 30 Abril, Filme de Destaque – Herói Independente
Num ano em que o pai conseguiu reduzir todas as suas fórmulas cinematográficas a uma balada francesa suavemente tocada pelo preto&branco sobre as nostalgias, traições e exortações da passividade de um casal que nem sabe nem está interessado em saber viver um sem o outro, Louis Garrel não só assina a narração do filme de que falo (Na Sombra das Mulheres) como nos traz também a sua primeira longa-metragem e mostra uma nova cara da família Garrel.
Clément (Vincent Macaigne) é um figurante de cinema que está apaixonado pela rapariga que trabalha no café da Gare du Nord, Mona (Golshifteh Farahani), e agora que esta decide livrar-se dele e quebrar qualquer possibilidade de um compromisso, Clément vira-se para o seu amigo Abel (Louis Garrel) para o ajudar a reconquistá-la. Mas enquanto Abel apta por usar uma abordagem pouco ortodoxa em nome da futura felicidade do amigo, ele não só se torna a causa do ainda mais profundo enclausuramento da vida de Mona como acaba por se apaixonar por ela, e entretanto Clément uiva aos céus pelo seu infortúnio.
Com o nome Les Deux Amis, o filme marcou presença na 68º edição do Festival de Cinema de Cannes na Semana da Crítica em 2015 e certificou-se de não envergonhar Garrel Junior e a história do cinema que este já carrega nos seus ombros. Através da dinâmica criada entre as três personagens da sua terceira e última (até agora) curta-metragem La Règle de Trois, Garrel faz partido do narcisismo aplicado ao símbolo sexual ao qual é agora ligado e junta-lhe um elemento de ligação, o mesmo que Jerry Lewis descreveu como a génesis do seu número de stand-up comedy com Dean Martin – “o rapaz bem-parecido e o macaco”, – interpretado por Vincent Macaigne, o “furacão” desta nova e colorida fase intimista do cinema novo francês protagonizada provavelmente pelo nosso amigo Arnaud Desplechin. Acrescentando à mistura a estonteante Golshifteh Farahani, Louis Garrel escreve a meias com o amigo de longa data Christophe Honoré e juntos replicam o mundo do triângulo de amor exacerbado, de uma mulher presa não só de forma literal mas também nela mesma, e uma história de amizade entre dois elos opostos, dois forasteiros sociais, que se apaixonam pela mesma mulher.
Se há um adjectivo que classifica o sabor deixado na boca de um espectador depois de verem Garrel no ecrã será o de “carisma”. E seja lá o que for dito na imprensa, ninguém estaria à espera de ver perante os seus olhos aquele tijolo de verdade humano onde é a comédia física que provoca tal manifestação e não o contrário. Surpreendentemente (ainda agora, após duas semanas terem passado desde a sessão exclusiva aquando do IndieLisboa 2016), Louis Garrel traz consigo o nervo vulnerável do cinema sensível europeu numa comédia dramática elegantemente filmada e mergulhada no vermelho, o sentimento orgânico que a personagem de Macaigne, Clément, espalha pelos cantinhos urbanos de Paris. Nós vemos a Gare du Nord como ela é, ouvimos o seu ritmo, a sua energia e sabemos que este não será o postal a Paris que Garrel poderia, de modo acéfalo, ter criado. Não obstante, o postal existe, mas na palavra que salta da página e é infundida na relação simbiótica entre os dois homens, que de maneiras distintas mas no entanto permanentemente patéticas, são comandados pela mulher, a única mulher, Mona, que passa a habitar os seus mundos.
Movido pelo bichinho nostálgico do 35mm, Louis, como actor de teatro, diz que sabe que necessita de tensão constante e o uso da película não só lho garantiu (devido ao seu valor financeiro), mas também serviu como instrumento de engrandecimento do seu método de dirigir actores (como actor que é e sabe ser) que este procurava para encontrar o equilíbrio como realizador de uma longa-metragem pela primeira vez. Mas o seu filme não é o poema formalista que estaríamos a contar querer apreciar. Nas suas palavras, este chama-o de”uma história em quadradinhos”, e a realidade é que tal como um livro de banda desenhada aberto à sua leitura, Les Deux Amis não exige absolutamente nada de nós a não ser a nossa atenção. Claro que fala nas entrelinhas e é tão saudoso como queremos sempre que um filme francês seja, espelhando a sua sentimentalidade nas nossas vidas pós-screening como um vírus. Mas é a acção do catalogar do filme, que se encaixa algures entre a lenidade do poço de contradições do ser humano e a profundidade com que Garrel transmite a tragédia do amor não correspondido e a prisão de se ser correspondido, que faz este pequeno filme falar mais alto. E de facto, este fá-lo e fá-lo com distinção, na tradição deste novo cinema ao qual eu gosto de chamar de “cinema da alma”, um cinema simples e imperfeito que se encontra ou encontrará em todos nós numa altura ou outra das nossas vidas.
Assim, o filme cresce da efervescência dos seus elementos episódicos, sempre franco na sua melancolia. Da evocação do Maio ’68, ao momento de libertação de Mona mergulhada em tons azuis a dançar ao som de Baby Blue de King Krule no café para Abel, à separação melodramática da amizade entre os dois homens igualmente idiotas, até ao final anti-catártico onde Mona permanece a perna trágica do triângulo amoroso, Clément e Abel colocam-se na órbita das desventuras das suas emoções descontroladas prestes a desvanecer assim que o sol apareça no horizonte e outro dia surja limpo de rancor. E tendo em conta como os papéis foram atribuídos aos vários determinados actores e não às personagens possuídas pelos últimos, há uma sinceridade que vem do antes. Há uma amizade que fala mais alto, tanto na colaboração entre os três brilhantes actores como entre Garrel e Honoré, e Garrel e a jovem directora de fotografia Claire Mahon, na qual o anterior se auxiliou para o ajudar a transmitir o consentimento do personagem que existe dentro do actor através do olhar submisso ou da cor arrebatada de um sorriso.
No final, como num vácuo, ecoam as palavras “A beleza complica as coisas”. E sim, a beleza realmente as complica se já há algo que impeça a racionalidade de vir ao de cima e denunciar a idiotice de ser e viver e estar apaixonado pela vida. E Garrel rapidamente nos trará, tenho a certeza, mais justificações para nunca mas nunca não nos apaixonarmos.
Review overview
Summary
Louis Garrel fala-nos dele e dos seus amigos como virtuosos da palavra e seres desajustados na sociedade, mas livres da pretensão que mata a arte do pensar. Neste seu triângulo amoroso, ele revela a tragédia do não saber amar que a consciência normalmente nega e por mais que não seja uma cerimónia orquestrada pela Nouvelle Vague, cheira a ela e é sincera o suficiente para lhe tocar.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização