Wes Anderson volta à animação stop motion e desenha uma distopia futurista numa cidade do Japão que decide banir todos os seus cães para uma ilha coberta de lixo.
Quem seguir de perto a filmografia de Wes Anderson encontra uma obra consistente e muito pessoal que, surpreendentemente, quanto mais insular e específica parece ir ficando, maior reconhecimento comercial e crítico vai angariando. Anderson é uma das vozes mais originais da sua geração, com um estilo distintivo — quer se ame ou odeie, é possível reconhecer imediatamente a sua marca autoral em qualquer um dos seus filmes. Neles podemos encontrar comédias melancólicas centradas em preocupações temáticas que lidam com famílias disfuncionais, abandono parental, rivalidade entre irmãos, perda de inocência e amizades improváveis. Tudo isto com uma estética muito específica colocada ao serviço das suas milimétricas narrativas: utilização de texto no ecrã, elaboradas composições sobrelotadas de elementos — tanto no primeiro plano, como no pano de fundo —, narração em off, utilização de uma perspetiva picada sobre as personagens — quase como que sugerindo uma visão divina — ou aproximações rápidas através da mudança de distância focal são alguns dos exemplos de contribuições «Andersonianas» para o léxico cinéfilo, usados para sublinhar elementos temáticos ou acentuar apontamentos emocionais.
Quando, em 2009, Anderson estreou-se na sua primeira animação stop motion, O Fantástico Senhor Raposo, a escolha parecia óbvia. O seu estilo comporta o vocabulário cinematográfico ideal para uma encenação táctil e de travo artesanal num contexto que oferece um controlo absoluto sobre os elementos no sentido de recriar com precisão as suas rápidas panorâmicas, tanto no eixo horizontal como no eixo vertical, os zooms antiquados ao estilo da década de setenta e o recorrente efeito casa de bonecas com autênticos dioramas de cortes transversais. Passados nove anos, Anderson regressa a este registo com Ilha dos Cães, mas onde O Fantástico Senhor Raposo era uma fábula sobre tensões familiares que agradava tanto a miúdos como a graúdos, o mais recente filme que estreou este ano na abertura do 68º Festival de Cinema Internacional de Berlim é uma experiência mais cerebral que pode acabar por alienar os mais novos.
Naquela que é provavelmente a sua obra mais conceptual, Anderson constrói uma premissa de um distópico e futurista Japão onde um vírus da gripe canina se espalha por toda a população de cães da cidade fictícia de Megasaki. O novo presidente da câmara, Kobayashi, assina um decreto banindo todos os cães para a Ilha do Lixo, apesar do cientista Professor Watanabe insistir que está perto de encontrar uma cura. O primeiro cão a ser banido é Spots, o cão de guarda de Atari, órfão e sobrinho de Kobayashi, que se tinha afeiçoado ao seu companheiro canino. Seis meses depois, Atari foge de casa, rouba uma avioneta e voa até à Ilha do Lixo com o intuito de recuperar Spots. Quando se despenha na ilha, é resgatado por cinco cães: Rex, King, Duke, Boss e Chief. A maioria decide ajudar Atari a encontrar o seu cão, muito embora Chief, um cão vadio que, ao contrário dos outros, não tem recordações agradáveis da sua anterior vida, esteja relutante em confraternizar com humanos.
Anderson voltou a reunir um elenco impressionante de vozes para dar vida às suas criações animadas. A encabeçar o grupo de actores americanos e japoneses (deixando alguns de fora: Edward Norton, Bill Murray, Jeff Goldblum, Bob Balaban, Kunichi Nomura, Ken Watanabe, Greta Gerwig, Frances McDormand, Fisher Stevens, Nijiro Murakami, Harvey Keitel, Koyu Rankin, Liev Schreiber, Scarlett Johansson, Tilda Swinton, Akira Ito, Akira Takayama, F. Murray Abraham) está o estreante por estas andanças Bryan Cranston como Chief, mais uma personagem central carismática, mas autocentrada, que terá de aprender a confiar em, e a contar com, terceiros, ou não fosse novamente o argumento o resultado de uma colaboração com os perenes Roman Coppola e Jason Schwartzman, desta vez com o auxílio de Kunichi Nomura.
Gostaria de deixar de lado as polémicas relacionadas com a suposta apropriação cultural do filme — Anderson decidiu que todos os cães falariam inglês, deixando as personagens humanas falar a sua língua nativa, o que significa que existem sequências em que o japonês não é traduzido, valendo-lhe a acusação de estereotipagem racial e de uma representação dos japoneses como sendo o Outro. Wes Anderson terá ido buscar a ideia para Ilha dos Cães quando, em Inglaterra, viu um sinal para a Ilha dos Cães, uma ilha real do Reino Unido. O cenário japonês aparece entretanto como uma homenagem a uma das suas maiores influências: Akira Kurosawa.
Dizia que Ilha dos Cães é um filme adulto, apesar da animação parecer sugerir o contrário, porque, apesar da viagem de Atari assentar numa premissa emocional, o filme se ocupar também de preocupações ambientais e políticas — caso raro, se não inédito na filmografia de Anderson. É certo que é sobre um miúdo e o seu amor ao seu cão, mas é também sobre a preservação do meio ambiente, sobre discriminação, imigração, intolerância e, num inusitado sincronismo com a realidade do país do autor — ao fim e ao cabo, Ilha dos Cães teve uma produção de cerca de quatro anos — sobre a sombra ameaçadora do autoritarismo e do totalitarismo. Talvez por isso, apesar do humor do costume estar presente em certa medida, a melancolia que o costumava tingir de complexidade e textura seja substituída por um desencanto e cinismo mal disfarçado pelo final redondo e reconciliador.
É uma tarefa ingrata ter de avaliar um filme de Wes Anderson apenas ao fim de uma única visualização. Visualmente deslumbrante — a fotografia e a composição são de excepção — tem sempre mil e um pormenores a ocuparem o ecrã onde estão sempre coisas a acontecerem — confesso que me senti um pouco perdido com tanta informação nas sequências iniciais — e o refinamento e a subtileza das cenas por vezes só se revelam em visualizações posteriores. Mais uma vez, tem uma extraordinária banda sonora da autoria de Alexandre Desplat, percussiva e propulsiva, mas pela primeira vez senti que o vasto elenco não foi utilizado em toda a sua potencialidade, com algumas personagens a não serem desenvolvidas devidamente. Apesar de revelar a assinatura inconfundível do seu autor, Ilha dos Cães não envolve emocionalmente, não obstante as suas várias tentativas. Por certo, merecerá que seja revisitado muitas vezes no futuro, resta saber se continuará a manter a distância, como Um Peixe Fora de Água, ou se se revelará como uma viagem emocional e emocionante, como Darjeeling Limited.
Review overview
Summary
Visualmente deslumbrante, é uma experiência mais cerebral que emocional e pode acabar por alienar os mais novos. Por certo, merecerá que seja revisitado muitas vezes no futuro, resta saber se continuará a manter a distância, como Um Peixe Fora de Água, ou se se revelará como uma viagem emocional e emocionante, como Darjeeling Limited.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização