Com a perna alçada em cima da secretária, pé descalço, cartas a viajarem de uma mão para outra, uma atitude confiante e um cigarro aceso à espera de ser tragado, Lily Stevens provoca impacto desde os trechos iniciais de “Road House” (Com o Amor Nasceu o Ódio), nomeadamente, quando chega ao clube nocturno gerido por Pete Morgan (Cornel Wilde). A câmara bem enfatiza essa preponderância ao deslocar-se sorrateiramente até revelar o semblante desta artista provocadora, decidida e sedutora. Dotada de um olhar que é capaz de expressar uma quantidade assinalável de palavras e sentimentos, Ida Lupino transmite estas especificidades desta espécie de femme fatale e o seu charme. A face da intérprete está em realce em diversos momentos. O realizador Jean Negulesco e o director de fotografia Joseph LaShelle exacerbam o magnetismo emanado pelo rosto da actriz, enquanto esta demonstra por diversas vezes que a sua Lily não é uma donzela indefesa ou alguém que se submete aos homens. Essa situação é particularmente visível quando a encontramos a esbofetear Pete, um acto que reforça as suas intenções de não abandonar o local e contraria os anseios deste indivíduo. Este encara-a como uma despesa demasiado cara, como mais um dos devaneios de Jefty (Richard Widmark), o dono do local, um indivíduo que não consegue conter os impulsos.
É o personagem interpretado por Richard Widmark quem contrata Lily, por quem se apaixona, ainda que não seja correspondido. Inicialmente parece apenas ingénuo e impulsivo, embora o intérprete faça questão de deixar latente que a postura mimada e obsessiva deste antigo militar pode contribuir para gerar imensos problemas. Widmark tem os seus melhores momentos a partir do desenvolvimento da fita, quando Jefty começa a expor o seu lado mais perigoso e manipulador, pronto a deixar que uma ferida aberta no coração tome conta da razão. Está longe de saber ouvir um não, ou de assumir uma postura pragmática, ao contrário de Pete, com quem tem uma relação de amizade desde os tempos em que serviram o exército durante a II Guerra Mundial. Se o dono do clube nocturno fica imediatamente interessado em Lily, já o gerente apresenta uma atitude diametralmente oposta. Existe uma tensão notória a rodear estas duas figuras, mas também uma atracção que se desenvolve através dessa irrisão. O olhar surpreendido que Pete apresenta quando observa pela primeira vez a artista a tocar piano e a cantar não engana. Está encantado. A luz que a ilumina também não deixa mentir ou esconder o quanto a protagonista é capaz de brilhar mais alto e irradiar um encanto que impossibilita qualquer tentativa de desviar o olhar.
Os números musicais são adornados pelo ambiente típico dos trechos do género nos filmes noir. A luz e as sombras encontram-se e lutam entre si, o fumo dos cigarros permeia os cenários e o ambiente, existe toda uma sensação de mistério, enquanto Ida Lupino canta, deslumbra e hipnotiza. Os planos mais fechados surgem em quantidade assinalável. Tal como os planos mais abertos que realçam o modo como a protagonista desperta a atenção de todos os presentes. Jean Negolesco sabe o poder de um close-up e utiliza-o. Um poder que adensa a faceta magnética que Ida Lupino imprime à sua Lily, uma personagem que parece incapaz de largar o cigarro. Esta é uma das várias características que “Road House” partilha com os filmes noir. Os cigarros estão sempre muito presentes, em particular, o seu fumo. Não só para transmitir mistério, mas também como marcação e afirmação de personalidade, que o diga a cantora. Note-se o acto de pousar o cigarro em cima do piano, um ritual que efectua antes de deixar a sua voz e o seu rosto inebriarem os presentes com a mesma facilidade com que o fumo permeia os cenários e os corpos.
Dos filmes noir encontramos também os personagens que vagueiam por uma zona cinzenta da moralidade, a insegurança no espaço urbano (a rixa em pleno clube nocturno é exemplo disso), autoridades pouco capazes de protegerem os inocentes, figuras erroneamente acusadas de crimes e uma utilização precisa do chiaroscuro. Observe-se as sombras que trazem consigo a sensação da criação de grades ou aprisionamento, algo particularmente notório em dois momentos da película. Um dos casos decorre quando a protagonista canta “Again”, com uma tira negra a cobrir um pouco do corpo do gerente e a realçar o quanto este começa a ficar preso à primeira, enquanto os olhares trocados por ambos demonstram que existe algo a nascer no interior de um aparente desprezo mútuo. No segundo momento já ambos estão mais próximos, com as sombras provenientes das persianas a trazerem uma sensação de prisão (que remete quer para o envolvimento emocional, quer para um episódio que decorre numa fase mais adiantada do enredo) e a rimarem com a camisola de Lily. A química entre Ida Lupino e Cornel Wilde é notória, com a dupla a expressar com naturalidade o quanto os seus personagens mudam um em relação ao outro e começam a deixar o amor e o desejo entrarem em cena.
Uma lição de bowling traz uma aproximação dos corpos, enquanto um encontro no lago liberta alguns dos sentimentos fervorosos que se encontravam contidos. O que também aquece o ambiente é a incapacidade de Jefty em aceitar a rejeição ou desagrilhoar-se das obsessões, com a tensão e a inquietação a assumirem as rédeas do último terço do filme. Note-se uma reunião junto a uma casa do lago onde Jean Negulesco utiliza o nevoeiro para potenciar a incerteza e o nervosismo, ou um diálogo mais intenso que beneficia não só da capacidade do cineasta para construir situações nas quais os nervos sobem, fervem, gritam e do trabalho de Ida Lupino, Richard Widmark e Cornel Wilde, mas também das gargalhadas que trazem consigo as sementes do desequilíbrio emocional. A acompanhar o trio mencionado encontra-se ainda a Susie de Celeste Holm, a caixeira do clube nocturno, uma figura que inicialmente está interessada em Pete, com a intérprete a não comprometer como esta personagem que evidencia uma postura extremamente fiável. Entre o drama, o romance, o filme noir e o suspense, “Road House” reúne com eficácia diversos ingredientes destes géneros e subgéneros, enquanto inebria, inquieta, seduz e deixa Ida Lupino brilhar bem alto.
Observação: O filme foi exibido na Cinemateca Portuguesa a 30 de Outubro de 2019 no âmbito do ciclo: “Ida Lupino – Uma Mulher em Terreno Perigoso.
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Summary
Entre o drama, o romance, o filme noir e o suspense, "Road House" reúne com eficácia diversos ingredientes destes géneros e subgéneros, enquanto inebria, inquieta, seduz e deixa Ida Lupino brilhar bem alto.
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Interpretação
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Produção
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