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Halloween

de David Gordon Green

muito bom

Quarenta anos depois do clássico com o mesmo nome de John Carpenter, David Gordon Green volta a colocar em confronto Michael Myers e Laurie Strode em Halloween, a sequela que faz tabula rasa das sequelas, reboots e remakes que vieram antes.

Saltando perto de quarenta anos após Halloween, de John Carpenter — estreado em Portugal como O Regresso do Mal —, depois de inúmeras sequelas, becos-sem-saída, reboots, remakes e sequelas de remakes, em 2015, a Dimension Films, na ausência de novo título na série, perdeu os direitos de produção que reverteram para a Miramax — produtora que, para os mais distraídos, já não é propriedade da Disney desde 2010. Numa manobra de génio, associaram-se ao produtor Jason Blum e à sua Blumhouse, conseguindo envolver John Carpenter como produtor executivo de um novo título. Mais surpreendentes ainda foram as revelações subsequentes. Em primeiro lugar, o envolvimento no argumento do comediante Danny McBride, em parceria com David Gordon Green, anunciado também como o realizador. Além de McBride ser mais conhecido pelos seus talentos cómicos, Gordon Green tem uma carreira muito peculiar onde alterna filmes de sensibilidade independente com comédias desmioladas, fazendo com que o par não fosse a escolha mais óbvia para revitalizar uma popular série de terror. Em seguida, foi anunciado que o filme seria uma sequela directa do título original, ignorando tudo o que veio posteriormente, incluindo o relativamente canónico Halloween II – O Grande Massace. Esta ideia, no mínimo discutível, apresentava no entanto a possibilidade de reconhecer o clássico de 1978 — estreando a tempo de celebrar o seu quadragésimo aniversário —, aproveitando ainda para apagar todas as decisões erradas que se seguiram, elevando ao mesmo tempo a fasquia da expectativa sobre o resultado final. 

A tabula rasa à pesada herança da saga permitiria que o guião fosse abordado sem constrangimentos nem amarras, logo colocando o novo filme sob exigente escrutínio, porque pelo menos o seu sucesso artístico passava a depender apenas das opções dos seus autores. Para elevar a expectativa ainda mais um pouco, Jamie Lee Curtis anunciou o seu regresso ao papel original de Laurie Strode, soube-se que Nick Castle estaria envolvido novamente de alguma forma com a interpretação do Michael Myers por detrás da máscara, e que John Carpenter — a viver uma segunda vida musical — colaboraria na composição da banda sonora original. Ninguém tinha pedido um novo Halloween, mas se este tinha de existir, não podia haver melhores condições para que fosse genuinamente um limpa-palatos de tudo o que aconteceu com a série ao longo de quatro décadas. E a verdade é que, tendo sido anunciada a sua estreia para perto do feriado com que partilha o nome, o confusamente entitulado Halloween discretamente foi gerando expectativa e antecipação, com podcasts a dedicarem-se a esmiuçar a série ao longo do ano e sites da especialidade a acompanharem as notícias de produção a par-e-passo, noticiando, por exemplo, que depois de ser exibida uma primeira versão numa convenção dedicada à série, o final ter sido totalmente refeito na sequência de reações negativas ao final original. Os mais atentos poderão encontrar no trailer oficial uma breve cena que alude a essa sequência preterida na edição final, em que se pode vislumbrar um confronto entre Laurie e Michael a céu aberto que não se encontra no filme.

Os podcasters Aaron e Dana, interpretados por Jefferson Hall e Rhian Rees, visitam o Sanatório de Smith’s Grove para entrevistar Michael Myers, a quem James Jude Courtney dá corpo — infelizmente o envolvimento de Nick Castle foi apenas um golpe publicitário e limita-se a uma única cena —, capturado em 1978 após ser baleado pelo Dr. Loomis na sequência da sua fuga e assassinato de cinco pessoas. Na presença do Dr. Sartain, o actor Haluk Bilginer, Aaron tenta provocar Michael com a máscara que ele usou na noite dos seus crimes, mas este não reage. Frustrados, os jornalistas de investigação visitam então Laurie Strode, a regressada Jamie Lee Curtis, para entrevistá-la, já que ela foi a única sobrevivente dessa fatídica noite. Laurie, que nunca recuperou do trauma, vive em reclusão, afastada da filha Karen, mais um papel da omnipresente Judy Greer, e da neta Allyson, a novata Andi Matichak, preparada para um possível reencontro com o papão de quem escapou por um triz da primeira vez. Karen passou a sua vida adulta a tentar sacudir a sua educação paranóica, mas os medos de Laurie parecem concretizar-se quando na véspera de Halloween o autocarro que transportava pacientes para uma prisão de segurança máxima tem um acidente e Michael Myers evade-se novamente. Depois de recuperar a sua máscara, camufla-se por entre os disfarces das festividades e retoma a sua aparentemente aleatória senda assassina na cidade de Haddonfield, Illinois, colocando o xerife Hawkins, o fiável Will Patton, bem como Laurie, na sua peugada.

A premissa de Halloween 2018 começa imediatamente por apresentar um elemento que desmistifica o arrepiante final do filme original de John Carpenter. Enquanto que este sugeria que o Mal puro, representado pela forma de Michael Myers, é indestrutível e está em toda a parte, o novo filme informa-nos que Michael foi capturado nessa mesma noite e tem estado aprisionado nos últimos quarenta anos. Curiosamente, esta opção funciona a favor da versão de David Gordon Green, caracterizando o assassino mascarado como um homem de carne e osso e colocando em confronto duas correntes de pensamento na abordagem a este tipo de assassino psicopata: valerá a pena tentar estudar e entender a psique de uma pessoa que mata por prazer, ou devemos demonizá-la e encará-la como um monstro, lidando simplesmente com o facto de que o mal existe e mantendo-nos alertas e preparados para nos defendermos dele caso seja necessário? Durante o desenrolar da narrativa, o filme assinado por Green, McBride e o menos mediático Jeff Fradley parece tomar explicitamente partido de uma destas abordagens. E para que não haja qualquer tipo de dúvida, este Michael Myers é tão letal e brutal como se esperaria de uma perspectiva moderna desta personagem. Mesmo antes de recuperar a máscara, essencial na eficácia da despersonalização no original, aqui recuperada mais para efeitos estéticos e de continuidade, Michael é um cruel assassino, não poupando quem se atravesse no seu caminho, incluindo crianças. Ao vestir a sua segunda pele, procura sistematicamente ferramentas mais eficientes para a sua actividade assassina, e quando finalmente sente o pulso ao agarrar um facalhão de cozinha, coroa o momento com uma das cenas mais gráficas do filme na conclusão de um tenso plano sequência.

Halloween sofre do mesmo mal de muitas outras obras recentes que tanto servem de sequelas a filmes populares, como de remakes disfarçados dos mesmos, recriando a estrutura narrativa e recheando-a de referências aos originais. A começar no título — quantas partes 2 conhecem que partilham o mesmo título exacto com o filme que seguem? Ironicamente, neste caso, fazem-se referências tanto ao clássico de Carpenter, como a algumas das suas sequelas menores ignoradas por este mesmo filme. Dependendo do nível de envolvimento do espectador com a série, vão-se reconhecer variados ecos de títulos anteriores, desde os mais óbvios — como a aula em que Allyson percebe ter uma figura a observá-la ou o momento em que Laurie cai da varanda para depois desaparecer, ambas subversões das cenas originais —, até outros mais rebuscados — como o vislumbre das máscaras de Halloween III – Season of the Witch, estreado entre nós como Regresso Alucinante, ou a dupla quase cómica de polícias, referenciando o pouco amado Halloween 5 – A Vingaça de Michael Myers. Tal como Carpenter tinha aproveitado a televisão das cenas caseiras para referenciar a influência de Howard Hawks, também Gordon Green parece aproveitar o mesmo mecanismo para piscar o olho a cineastas que o terão influenciado, e numa cena podemos vislumbrar um momento do filme de culto de Alex Cox de 1985, O Clandestino.

Halloween, ao tentar construir uma ponte entre o passado e o presente, parece encerrar em si próprio distintas narrativas. O primeiro acto aproveita-se do fenómeno de podcasts de crime real, como o Serial por exemplo, como desculpa para devolver ao seu legítimo proprietário a máscara de William Shatner desgastada pelo tempo, guiando-o de volta a Haddonfield, desta vez adequadamente habitado e impregnado de um verdadeiro espírito do Dia-das-Bruxas. De seguida, temos o típico slasher que vitima adolescentes incautos ocupados nas suas escapadas amorosas e sexuais — e, nesse aspecto, este é um filme muito politicamente correcto, quase pudico. David Gordon Green é um realizador muito diferente de John Carpenter. Falta-lhe a paciência que fez do filme de 1978 uma experiência embaladora tão marcante. O seu ritmo mais apressado, no entanto, não trai a atmosfera que impregna aos vários momentos que constrói de forma eficaz, com um bom equilíbrio entre sustos fáceis, falsos alarmes e surpresas genuínas. Entre as várias sequências em que acumula e sustém a dose certa de tensão contam-se a cena do local do acidente do autocarro, uma cena que envolve um armário e uma cena que utiliza de forma criativa a iluminação externa de uma casa por sensores. O maior pecado narrativo acaba por ser o Dr. Sartain que, apesar de central ao tal debate entre a humanização e a demonização de um assassino, se revela como um exagerado e inverosímil dispositivo narrativo para efectuar a ponte entre o segundo e o terceiro acto, levando Michael até à casa de Laurie.

Para o final, sobra o confronto que todos esperavam e que coloca frente-a-frente Laurie Strode e Michael Myers. Se o argumento vacila um pouco nesta recta final, é aqui que se revelam os temas que atraíram Jamie Lee Curtis para o projecto e que germinam as sementes do trauma incutido em Laurie, das consequências na sua vida e nas várias gerações da sua família. Laurie passou de vítima a agressora, tanto na forma como “militarizou” a vida da sua filha como no condicionamento que impôs à sua própria existência e que culminou numa atitude activamente bélica e beligerante, notoriamente desequilibrada, que levou ao afastamento da sua própria família. De forma atempada e presciente, o argumento veio também de encontro aos tempos que se vivem apresentando três gerações de mulheres cujas vidas foram afectadas profundamente pela violência exercida por um homem — e é impossível negar a força do simbolismo fálico de uma faca a penetrar a carne —, que se juntam para combater a figura agressora na origem desse trauma. Resta saber se o desfecho será suficiente para o cicatrizar das feridas e para uma verdadeira cura, ou se será apenas mais um reflexo de um ciclo interminável de violência gerada pela violência.

Resta falar da música, na verdade da autoria de John Carpenter, em colaboração com o seu filho Cody Carpenter e Daniel Davies. O trio responsável pelo reacender do entusiasmo do mestre do terror pela música, e que o levou a digressões mundiais e à edição dos álbuns Lost Themes e Lost Themes II, bem como da compilação com novas roupagens dos clássicos de Carpenter, Anthology: Movie Themes 1974–1998, revisita e moderniza o som das icónicas músicas compostas algures em 1978 em três dias. Com apenas alguns apontamentos verdadeiramente novos, é caso para dizer que em equipa que ganha não se mexe, mas, se seria sempre muito difícil superar o estatuto da banda sonora original, não deixa de ser uma ligeira desilusão a falta de temas originais verdadeiramente marcantes.

David Gordon Green abordou o seu Halloween como um filme que respondia ao original, dando-lhe uma conclusão quarenta anos depois. Mas o inesperado sucesso que tem almejado nas bilheteiras fizeram disparar imediatamente a notícia da produção de uma sequela. É certo que podíamos passar sem mais filmes com o Michael Myers, mas o facto é que isso é verdade há muito tempo, e ainda assim 2018 ofereceu-nos uma sequela competente com o assassino mascarado.

Review overview

Summary

Longe de perfeito, Halloween é no entanto uma sequela competente que utiliza os lugares-comuns de um típico slasher para oferecer uma oportuna história de afirmação e reinvidicação feminina.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
3.5 10 muito bom

Comentários

Written by António Araújo

Cinéfilo, mascara-se de escritor nas horas vagas, para se revelar em noites de lua cheia como apaixonado podcaster.

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