“Le Redoutable” (Godard, O Temível) apresenta Jean-Luc Godard (Louis Garrel) como um destruidor que aniquila o seu cinema e as suas relações, que é extremamente contraditório, idealista, egocêntrico, arrogante, criativo, inseguro, instável e incapaz de proteger a integridade dos seus óculos. Louis Garrel transmite com competência estas características do personagem, enquanto vagueia pelas margens da caricatura, sempre sem descurar alguma da complexidade que envolve Godard. Seria impossível captar todas as especificidades que pontuam a existência e a personalidade deste cineasta. O realizador Michel Hazanavicius está consciente dessa impossibilidade e efectua uma obra maioritariamente leve, a espaços quase a satirizar o cineasta, enquanto brinca com os recursos e artifícios utilizados pelo grande expoente da Nouvelle Vague e aborda o período que envolveu a relação entre Godard e a actriz Anne Wiazemsky (Stacy Martin), em particular, entre as filmagens de “La chinoise” (1967) e “Le vent d’est” (1970). É um ciclo marcado por um contexto histórico fervilhante, pontuado por protestos, conflitos e o Maio de 68, algo retratado de modo muito simples por Hazanavicius, quase como um adorno que permite explanar algumas das mudanças da figura retratada ao longo do filme.
Dividido em capítulos, muitos deles com títulos carregados de ironia e a remeterem para diversas obras de Godard, “Le Redoutable” começa por apresentar os dois protagonistas com recurso à narração em off, tendo como cenário o set de filmagens de “La chinoise”. A paleta de cores destes trechos iniciais remete precisamente para essa obra, com Hazanavicius a demonstrar que estudou bem o modo criativo como o biografado utilizava a linguagem cinematográfica. Se Godard utilizava estes recursos com um significado ou para dizer algo, nem que fosse para desestabilizar, já o realizador de “Le Redoutable” emprega estes artifícios para adornar e apimentar o filme. Hazanavicius está longe de querer ser disruptivo, embora tenha algum sucesso a encontrar o humor na vida do retratado e a expor a desintegração do matrimónio deste com Wiazemsky. Stacy Martin imprime maturidade, personalidade e charme à sua personagem, uma jovem mulher que inicialmente sente algum encanto e admiração por Godard, apesar de começar a afastar-se gradualmente do mesmo, fruto das mudanças de comportamento do protagonista. Note-se as atitudes cada vez mais politizadas e irascíveis do realizador, ou a sua incapacidade para aceitar ideias que o contrariem, ou o modo surpreendente como rejeita as suas obras mais populares, ou a dificuldade em lidar com a má recepção de “La chinoise”.
Hazanavicius retrata Godard como um idealista marxista e maoísta que se deixa levar facilmente pelas emoções e nem sempre é capaz de compreender aqueles que defende ou de fundamentar as suas opiniões. Esta situação conduz a algumas peripécias que tanto têm de cómicas como de problemáticas, sejam em comícios ou em manifestações. Nessas ocasiões, Godard conta regularmente com a companhia da esposa e exibe uma enorme incapacidade para proteger os óculos. Diga-se que a destruição dos óculos é um gag recorrente, com o humor e a leveza a estarem sempre muito presentes em diversos momentos do filme. “Le Redoutable” não almeja a profundidade ou o rigor histórico, embora aborde episódios relacionados com o lançamento de “La chinoise” e a má recepção do filme, o Maio de 68, a suspensão do Festival de Cannes de 1968, a criação do Grupo Dziga Vertov, para além de contar com alguns personagens secundários inspirados em figuras reais, tais como Michèle Rosier (Bérénice Bejo), Jean-Pierre Gorin (Félix Kysyl), Bernardo Bertolucci (Guido Caprino), Marco Ferreri (Emmanuele Aita), entre outros exemplos. Poucos personagens secundários ganham uma dimensão acrescida, fruto de algum desleixo de Hazanavicius, embora Rosier e Bamban (Micha Lescot) estejam presentes em diversas situações de relevo, sobretudo devido a acompanharem Godard e Wiazemsky em alguns episódios que pontuam o enredo.
O argumento de “Le Redoutable” tem o livro de memórias de Wiazemsky como fonte de inspiração, algo que em certa medida ajuda explicar o facto das peripécias relacionadas com o matrimónio do casal estarem regularmente em destaque ao longo da película. Também os filmes de Godard serviram como um manancial de inspiração para Hazanavicius, sobretudo para um dos momentos mais inspirados da fita, em particular, uma sessão de cinema onde as falas dos protagonistas preenchem as imagens de “La Passion de Jeanne d’Arc”, um pouco a trazer “Vivre sa vie” à memória. Não é a única obra de Godard a ser evocada. Note-se um episódio a preto e branco em que ficamos diante de alguns planos fechados que nos deixam perante o corpo despido de Wiazemsky, muito à “Une femme mariée”. Temos ainda os diversos jogos com os sons, os travellings, o destaque às mensagens nas paredes ou à publicidade da época, a narração em off, ou seja, uma série de elementos que remetem para diversas obras do cineasta. No fundo, “Le Redoutable” fica entre a homenagem e a sátira a Godard, enquanto reverencia alguns dos seus filmes e coloca-nos perante a breve união entre o cineasta e Anne Wiazemsky, sempre com alguns salpicos do contexto histórico, uma simplicidade desarmante e interpretações competentes de Louis Garrel e Stacy Martin.
Review overview
Summary
"Le Redoutable" fica entre a homenagem e a sátira a Godard, enquanto reverencia alguns dos seus filmes e coloca-nos perante a breve união entre o cineasta e Anne Wiazemsky.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização