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Glass

de M. Nighy Shyamalan

muito bom

M. Night Shyamalan apanhou Hollywood de sobressalto quando foi lançada a sua terceira longa metragem: O Sexto Sentido (1999) despertou a atenção da indústria para este jovem realizador, que com uma história sobrenatural invulgar conquistou um lugar importante no meio dos seus contemporâneos. O feito mediático repetiu-se, se bem que nunca na mesma escala, nos dois filmes seguintes: O Protegido (2000) e Sinais (2002). À época, a sua fama tomou tais proporções que até a revista TIME, numa decisão editorial duvidosa, indicou Shyamalan como o próximo Steven Spielberg.

AVISO: O texto que se segue contém spoilers de O Protegido e Fragmentado.

Com o passar dos anos, o público entendeu que o realizador não esteve “à altura” da estranha profecia daquela publicação: tendo razoáveis sucessos de bilheteira com os projetos seguintes, não conseguiu, no entanto, manter o culto gigantesco gerado com o filme de 99. A crítica deixou de estar a seus pés a certa altura, graças a fiascos como O Acontecimento (2008) e O Último Airbender (2010). Os anos de glória já tinham acabado há muito, e Shyamalan parecia, tal como os fãs, ter perdido o interesse pela sua obra. De jovem prodígio pronto a conquistar a Meca do cinema, foi-se tornando progressivamente numa anedota.

Mas de repente, eis que o realizador surpreendeu meio mundo com um objeto de baixíssimo orçamento: A Visita (2015) não foi o regresso de Shyamalan aos grandes filmes, mas foi um upgrade significativo em relação aos desastres que o antecederam, sendo uma pequena comédia de terror com as suas particularidades, e um mega sucesso no box office. Ele voltaria, a partir daqui, a ser um nome a seguir.

A surpresa repetiu-se com Fragmentado (2016) que, utilizando uma premissa que poderia estar na ténue linha entre a credibilidade e o ridículo, acabou por nos revelar James McAvoy na pele de homem que tem 24 personalidades dentro dele – um belo trabalho de representação que nos parece ter sido injustamente ignorado, talvez por ainda haver o preconceito quanto ao cinema de género dentro e fora de Hollywood. E outra surpresa, incluída de raspão nesse filme de horror, meio trashy mas novamente muito indie, foi a inclusão de uma curtíssima cena em que Bruce Willis repetiu a sua personagem de O Protegido. Os dados ficaram lançados: o projeto seguinte de Shyamalan juntaria as personagens destes dois filmes.

E eis-nos então chegados a 2019 e a Glass, o capítulo final de uma bizarra trilogia. O título vem da personagem de Samuel L. Jackson, que faz parelha com Willis em O Protegido. Para compreender Glass é absolutamente necessário ver ou rever os dois filmes que antecedem a narrativa, isto para o espetador poder ficar totalmente a par de todos os detalhes desta nova trama.

Em Glass, Shyamalan junta então essas três personagens com o objetivo de unir os dois universos muito distintos: o de David Dunn (Willis), que depois de um acidente de comboio, descobriu possuir super poderes, e de Elijah Price (Jackson), o homem fanático comics que causou o acidente para poder tornar-se no vilão de Dunn; e o de Kevin Wendell (McAvoy), que no seu corpo carrega muitas outras figuras, masculinas ou femininas, de idades distintas e com intenções mais ou menos pacíficas. De uma forma um pouco rebuscada, Shyamalan une dois filmes, separados por década e meia.

A ligação faz-se num hospício, onde encontraremos os três personagens, analisados pela Dra Ellie Staple (Sarah Paulson), que pretende trazer os pacientes à realidade, esquecendo os seus super poderes ou intenções saídas de um comic. A partir daqui, Shyamalan leva-nos para uma boa aventura com alguns twists (mais ou menos previsíveis), prolongando e reinventado a lógica de O Protegido e dando outra camada psicológica à personagem de McAvoy. Volta a ser feita uma desconstrução dos códigos das histórias e filmes de super-heróis, e são visíveis algumas referências às inovações trazidas por Alan Moore e Frank Miller a esses universos nos comics.

Além disto, Glass faz também a apologia da diferença, em que a invulgaridade das personagens simboliza a opressão de todos os que querem fugir das normas estabelecidas. E há aqui mais ideias de cinema por minuto do que em todos os títulos que têm sido vomitados ad nauseam pela Marvel e DC: combatem-se os clichés visuais que povoam esses universos cinemáticos e a estrutura da história desafia os padrões dessas produções altamente calculadas.

E advertimos os fãs de universos cinemáticos que Shyamalan dá esta história por encerrada com este filme, não deixando espaço de manobra para mais sequelas. É claro que qualquer produtor com cifrões no lugar dos olhos poderá encontrar aqui motivos para ganhar mais uns cobres, mas o cineasta quer seguir em frente. Já longe vão os tempos em que uma sequela podia ser conclusiva e não permitir logo, numa lógica mercantilista, mais sequelas para os próximos vinte anos.

Os heróis e os vilões desta história confundem-se, entre si, sendo que há espaço para anular ou retificar o que vimos em O Protegido e Fragmentado. E essa é a parte mais interessante de Glass: essa vontade sempre presente de Shyamalan em lutar contra os “ícones” do seu próprio legado cinematográfico – o que falha sobretudo em momentos de demasiada exposição da narrativa, em que a doutora acaba por ser a personagem cuja utilidade maior está em explicar detalhes da história, tal como a sua “colega” em Fragmentado. Mas ver este filme permite que, acima de tudo, assistamos a interpretações singulares dos três protagonistas. A história culmina num desfecho que pode parecer pensado à última hora, mas não deixa por isso de ser uma forma peculiar de jogar com as expectativas dos espetadores, nesta era em que são os trolls das redes sociais que parece que mandam nas histórias que vemos no grande ecrã.

Continuamos a não reencontrar o Shyamalan que entusiasmou o mundo há duas décadas, mas Glass é mais uma prova que ele ainda nos pode surpreender, levando a sua visão avante e sem medos de ofender um cinema mainstream que, em vez de ideias, prefere estímulos fáceis e ruídos múltiplos que permitam que não se ouçam as pipocas. Já ficou a promessa de que quer continuar a apostar em filmes de pequena escala, mas que lhe permitem maior liberdade criativa. Esperemos que, vendo como a qualidade das suas produções tenha sido significativa desde a visita, o melhor ainda esteja para vir.

Review overview

Summary

Glass continua a não ser o grande regresso de M. Night Shyamalan, mas é mais um patamar na progressão qualitativa dos seus filmes desde A Visita e uma união peculiar dos universos de O Protegido e Fragmentado.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
3.5 10 muito bom

Comentários