Às vezes é necessária a ficção para nos trazer o realismo que está ausente nas chamadas imagens reais. É isso que nos parece transmitir Stéphane Brizé, que depois do bem recebido A Lei do Mercado (La loi du marche, 2015), volta agora a olhar para os conflitos laborais no seu mais recente Em Guerra (En guerre, 2018).
Em comum, os dois filmes têm, desde logo, a interpretação de um dos actores do momento no cinema francês, Vincent Lindon – que podemos ver também em A Aparição (L’apparition, Xavier Giannoli, 2018) actualmente nas salas portuguesas – e se, no primeiro filme, Brizé nos dava o drama pessoal de um homem atirado para o desemprego, agora dá-nos um exemplo de uma situação recorrente: o fecho de empresas, não pelo tantas vezes alegado défice de competitividade, mas por busca de maiores rentabilidades para os accionistas, mesmo que à custa de despedimentos.
A acção decorre numa fábrica de peças de automóveis, na pequena cidade francesa de Agen, cujo grupo alemão que a detém decide fechar após dois anos de uma situação excepcional em que, para combater uma suposta crise de resultados e salvar empregos, conseguiu subsídios governamentais e um compromisso dos 1100 trabalhadores, para trabalharem gratuitamente 5 horas extra por semana. Agora, sem aviso, a direcção decide quebrar o seu lado do compromisso, fechando a fábrica, sem contrapartidas para os trabalhadores. Com governo e tribunais a lavarem as suas mãos, resta aos trabalhadores, como forma de luta, o bloqueio da produção e de acesso ao stock, exigindo conversações com a direcção do grupo alemão.
Filmado quase como se a câmara fosse apenas mais um interveniente dentro dos grupos de discussões, o filme é um conjunto de encontros, reuniões, manifestações e conversas sempre agitadas, onde a tensão é evidente a cada palavra e qualquer momento é passível de rebentar como uma bomba. Vemos um carro ser virado ao contrário, uma tentativa de entrada forçada numa sede de representantes da indústria, um bloqueio desfeito à força pela polícia de intervenção, e vemos muitas discussões quentes envolvendo dirigentes dos trabalhadores, da empresa, do governo, e do grupo alemão.
De todas as vezes, Brizé usa a intensidade de diálogos e planos (estarmos bem no meio, sem quase sabermos para onde virar a cabeça quando, muitas vezes, todos falam ao mesmo tempo, incomoda como se lá estivéssemos), num fôlego extenuante, de nos cortar a respiração (tirando pequenos apontamentos da banda sonora a marcar a separação de capítulos, não há momentos de alívio), onde vamos assistindo ao crescente desespero de uns e ao cinismo de outros, numa clara tomada de posição do realizador sobre algo que talvez as notícias filmadas e a imprensa escrita pintem de outra forma, e que nos faz repensar a sociedade em que vivemos, e as prioridades e verdadeiras motivações dos modelos económicos que as regem.
Para além da mensagem, o que mais espanta em Em Guerra talvez seja o naturalismo de todas as interpretações, onde actores não profissionais (mas com experiência de vida nos papéis que assumem) secundam brilhantemente um Vincent Lindon que, como tem vindo a fazer, se assume como uma estrela discreta, um actor que se impõe pelo silêncio e diz essencialmente nas entrelinhas. Ninguém destoa num elenco que nos faz crer estarmos dentro de uma situação real (e realista), com a possibilidade de ir onde as câmaras da televisão não nos levam, e de compreender, o que os jornais não nos contam.
Pese um final excessivo, e talvez evitável, Em Guerra marca pela sua pertinência, actualidade e estilo, ao abordar frontal e documentadamente, um tema que tem ainda muito para nos contar.
Review overview
Summary
Retrato realista daquilo que as câmaras de televisão ficcionam, Em Guerra é uma clara tomada de posição de Stéphane Brizé, filmada com um realismo tenso e intenso que não nos dá tréguas, numa análise das motivações dos grandes grupos empresariais e da forma cega com que usam as vidas dos seus trabalhadores.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização