Um olhar para os bastidores da América, com várias camadas de verdades, na mediática história da vilã moderna Tonya Harding.
Saber que um filme se dedica a contar a história de uma das mais célebres vilãs da história recente do desporto dos Estados Unidos pode parecer mais um episódio do crónico olhar para o próprio umbigo a que o cinema norte-americano nos vem habituando. E Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) é isso mesmo… mas muito mais.
Comecemos com um pouco de história. Tony Harding tornou-se uma das mais mediáticas patinadoras artísticas da história, quando, em 1994, surgiu a notícia de que a sua colega e rival Nancy Kerrigan tinha sido brutalmente agredida nas pernas, por alguém ligado a Tonya, para a afastar da competição por um lugar nos Jogos Olímpicos de Inverno desse ano.
De promessa fulgurante e primeira atleta a conseguir um triple-axel (descanse o espectador, que sairá do filme a falar como conhecedor) a máxima vilã do desporto mundial, como Tonya diz algures no filme «por um momento fui amada, para depois ser odiada, e hoje ser uma anedota». Então porque pegou Craig Gillespie nessa anedota e a tornou um filme? Segundo o próprio, porque esta anedota lhe deu uma oportunidade de contar uma história cuja verdade ainda hoje é elusiva, dependendo de cada interveniente. E, acrescente-se, porque sob a máscara de um falso documentário sobre um episódio caricato do mundo da patinagem, Gillespie pôde deitar um olhar incisivo sobre a verdadeira América, não a das grandes cidades ou paisagem idílica, de aventuras e heróis, mas sim aquela que não chega à televisão, feita de gente baixa e mesquinha, mas tão mais real que a primeira.
E é nesse modo de nos dar a conhecer o mundo por detrás do mundo (as histórias por detrás do mito de Tonya e a América por detrás da fachada luminosa dos meios de comunicação) que Gillespie começa a triunfar. Com uma postura tanto crítica quanto equidistante de qualquer verdade em que queiramos acreditar, Eu, Tonya leva-nos como num passeio por vidas alheias, guiados pelas entrevistas que se entrelaçam com narrativa, e quebras de quarta parede em que os personagens saem da narrativa para a sua própria entrevista, lembrando-nos que, só porque vemos um flashback, não significa que os eventos aconteceram assim.
Com essa acutilante ironia, que passa por um mundo de banalização da violência doméstica, papel ambíguo das relações familiares e seus exemplos (se Allison Janney, no papel da odiosa mãe de Tonya, não ganhar o Oscar, muito cegos e surdos estarão os jurados da Academia), patéticas figuras masculinas, e a eterna auto-desculpabilização da protagonista, Eu, Tonya vai do drama à comédia, mas sempre com sobriedade e inteligência, onde a realização de Gillespie e uma montagem brilhante – aqui e ali a lembrarem o melhor Scorsese –, tornam o que poderia ser um relato seco, numa experiência tão fulgurante e inesperada como o é a interpretação – a primeira como leading lady – de Margot Robbie, que nos faz rir com o ridículo de Tonya, e nos comove ao mostrar que afinal todos somos predadores ávidos por queimar os nossos heróis em praça pública.
E aqueles que disserem que a extrema caricaturização de alguns personagens é um exagero, fiquem até depois dos créditos finais para conhecer as figuras que inspiraram o filme, e verão que se erro houve foi o de não as caricaturizar ainda mais. É que aquela América – mesquinha, tacanha, feia e bruta – existe mesmo, e aquelas pessoas também. E essa é uma verdade mais sólida que a dos acontecimentos narrados, pois esta é apenas aquela que quisermos trazer da sala.
Review overview
Summary
Em jeito scorsesiano, entre o falso documentário e a narrativa onde não faltam quebras da quarta parede, Craig Gillespie mostra-nos a América escondida, mesquinha e anedótica, pela história da vilã desportiva Tonya Harding, com interpretações monumentais de Allison Janney e Margot Robbie.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização