Profundamente romântico, cândido e terno, “Hikari” (Esplendor) surge como um raio de sol que ilumina a alma e aquece o coração. No seu centro estão dois personagens sensíveis, solitários, pouco faladores, dotados de espessura e capazes de despertarem empatia. Esses personagens são Misako Ozaki (Ayame Misaki) e Masaya Nakamori (Masatoshi Nagase). Ela escreve os textos para as audiodescrições de filmes (destinadas a cegos ou a deficientes visuais), tem uma sensibilidade muito especial e procura transmitir as emoções da Sétima Arte a partir dos seus escritos. Ele é um conhecido fotógrafo que está a perder lentamente a visão e tem na sua Rolleiflex o seu coração. Os dois entram em contacto nas reuniões entre Misako e um grupo de deficientes visuais, que têm como objectivo aferir o que resulta ou não no interior dos textos e limar os mesmos. Diga-se que estes eventos contribuem ainda para expor a forma bem viva como alguns cegos conseguem captar a essência do cinema, bem como o desejo da protagonista em transmitir uma panóplia de emoções aos homens e mulheres que escutam a obra cinematográfica e a narração que descreve a mesma.
Um dos vários méritos desta longa-metragem centra-se exactamente na sua capacidade para apresentar de modo credível e delicado a realidade que envolve a produção das audiodescrições. Outro dos seus méritos é o de expor com enorme precisão a forma como os deficientes visuais absorvem este tipo de conteúdos, com o trabalho de Arata Dodo a ser essencial para esse feito. O director de fotografia e a realizadora Naomi Kawase apostam numa série de planos fechados que permitem realçar as expressões que percorrem os rostos dos diversos personagens que povoam a sala de reuniões, um cenário onde imensas experiências e sugestões são partilhadas, com “Hikari” a colocar-nos perante o modo muito particular como os cegos e deficientes visuais contactam e relacionam-se com o cinema. É uma ligação que a espaços traz à memória a relação que formamos com os livros, com muito a ser concebido na mente e com recurso à criatividade, com esta longa-metragem a exibir de forma paradigmática a capacidade que o cinema tem para transportar-nos para o interior de realidades que não dominamos ou conhecemos de forma clara.
Pelo caminho, Naomi Kawase aborda assuntos relacionados com o cinema, a fotografia, a passagem do tempo, a memória e desenvolve a relação que se forma entre a dupla de protagonistas. As dinâmicas entre Misako e Masaya são inicialmente tempestuosas, com o fotógrafo a não apreciar o estilo extremamente descritivo da escritora, enquanto esta considera que o seu interlocutor não tem imaginação. Masatoshi Nagase exprime de modo convincente as dificuldades que o seu personagem sente por estar a perder a visão, algo notório quando observamos os movimentos e os comportamentos deste indivíduo. O tacto surge como um elemento fundamental para este contactar com tudo aquilo que está ao seu redor, embora, no início do filme ainda consiga ver parcialmente quando baixa a cabeça. Nesse sentido, a sua máquina fotográfica Rolleiflex é fundamental, com esta a permitir que Masaya tire fotografias sem olhar de frente, enquanto o protagonista procura conservar os pedaços de tempo e de memórias que capta com o auxílio da sua objectiva. Se a fotografia é a paixão de Masaya, já Misako tem no cinema um meio de se evadir da realidade, com Ayame Misaki a incutir uma personalidade reservada e sonhadora à sua personagem, uma jovem adulta que ainda não ultrapassou a dor e o trauma provocado pela morte do pai.
A protagonista surge quase como uma intermediária entre o filme e o público ao qual os seus textos são destinados, enquanto procura transpor a sua visão dos acontecimentos e aos poucos começa a sentir de forma bem viva o enredo da obra que está a descrever. Ayame Misaki transmite uma certa candura e inocência como Misako, algo que se adequa na justa medida ao romantismo e sinceridade que pontuam esta obra cinematográfica, com os close-ups recorrentes a realçarem muitas destas características que percorrem o rosto desta figura solitária. Nunca encontramos Misako a sair com amigos, embora seja relativamente comum observarmos a escritora a treinar o seu hábito de descrever e sentir o mundo que a rodeia. Note-se o momento em que somos colocados diante da personagem interpretada por Ayame Misaki a tocar na areia do parque, ou a circular de olhos fechados na faixa para deficientes visuais. São momentos dotados de alguma sensibilidade, um pouco à imagem da cena em que nos deparamos com Misako a retirar e observar os objectos que se encontram na carteira do seu progenitor, quase que a procurar conservar ou recuperar as memórias a partir dos mesmos.
“Hikari” também é um filme sobre memórias, sejam aquelas que se encontram conservadas na mente, numa fotografia ou em locais e objectos. A certa altura do filme, encontramos a protagonista a circular por uma espécie de floresta que contribui para o reavivar de uma série de memórias do passado, enquanto procura pela mãe, uma idosa que habita num espaço rural e padece de uma doença grave do foro mental. É um dos vários trechos de “Hikari” que surgem dotados de poesia e imensa beleza, que conservam no seu interior uma certa sensação de melancolia, algo exacerbado pela banda sonora e pelas vozes que ecoam do passado em direcção ao presente. O episódio mencionado permite ainda que Naomi Kawase volte a deixar a natureza em destaque, com o espaço de uma floresta a colocar em contacto o presente e o passado de uma mulher e de um território. A cinematografia também é fundamental para tudo funcionar, sobretudo quando os raios solares aparecem em todo o seu esplendor, seja no episódio mencionado ou em outro momento em que a iluminação é essencial, com Arata Dodo a aproveitar estes fios de sol para aquecer os sentimentos e exacerbar a atmosfera simultaneamente romântica e melancólica que percorre o filme. Note-se quando encontramos dois personagens a falaram sobre a sua ligação com o sol e os raios solares, com a iluminação, o trabalho dos actores, a fotografia e o argumento a elevarem aquele que é um dos trechos mais memoráveis da película.
O fascínio que Misako e Masayo têm pelo pôr do sol é notório, algo que remete para as memórias de ambos. Observe-se a fotografia que se encontra guardada na carteira do pai de Misako, uma imagem que tem o pôr do sol em pano de fundo e contribui para reavivar um episódio que deixou marca na protagonista. Essas memórias reacendem-se de forma ainda mais efusiva a partir do momento em que a escritora se depara com uma fotografia de um álbum da autoria de Masayo, algo que contribui para aumentar a curiosidade da primeira em relação ao fotógrafo. Naomi Kawase desenvolve a ligação e as dinâmicas da dupla de protagonistas com enorme sensibilidade e lirismo, enquanto beneficia do talento dos intérpretes e da química convincente entre Ayame Misaki e Masatoshi Nagase. O filme conta ainda com um ou outro personagem secundário que se consegue destacar. Note-se o caso de Kitabayashi (Tatsuya Fuji), um realizador de cinema que expõe uma visão pragmática e pessimista do seu filme em relação à interpretação optimista e esperançosa de Misako.
Num determinado momento de “Hikari” somos colocados perante o resultado final do trabalho da protagonista, com Naomi Kawase a expor não só alguns pedaços do filme que é exibido com o acompanhamento da audiodescrição, mas também os sentimentos que a fita desperta na plateia, enquanto observamos a comunhão entre o cinema e a vida, a melancolia e a esperança. É um episódio que resume paradigmaticamente a ternura e o romantismo que percorrem todos os poros de “Hikari”, com o poder da imaginação e da Sétima Arte a ser exibido de forma sublime. Naomi Kawase deixa-nos assim perante um drama terno, romântico, cândido e delicado, onde o cinema, a fotografia e as memórias têm um papel de relevo, sempre tendo Misako e Masayo como figuras centrais, uma dupla que deixa marca e permite a Ayame Misaki e Masatoshi Nagase sobressaírem em grande nível.
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Profundamente romântico, cândido e terno, "Hikari" (Esplendor) surge como um raio de sol que ilumina a alma e aquece o coração.
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