Em antecipação da estreia na quinta-feira de Blade Runner 2049, a aguardada sequela realizada por Denis Villeneuve de Blade Runner: Perigo Iminente, fazemos durante esta semana uma retrospectiva do prodigioso filme de Ridley Scott de 1982 que foi ganhando um estatuto unânime de clássico ao longo dos anos.
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Se compararmos a cópia de trabalho de Blade Runner: Perigo Iminente exibida às audiências de teste com a versão estreada nos cinemas podemos ter um vislumbre da subtil importância das opções editoriais para o resultado final. Aquela versão, apesar de muito próxima da versão final, é constituída maioritariamente por takes alternativos ou diferentes ângulos de câmara daqueles que viemos a conhecer, dotando o filme de um ritmo e respiração diferentes. A banda sonora de Vangelis ainda não estava completa na altura, tendo grande parte da reta final sido ilustrada por música temporária. Em falta estão também, obviamente, a narração em off e o final feliz que vieram a ser incluídos mais tarde. Mas em 1982 nada disto era conhecido e o que chegou aos grandes ecrãs, e mais tarde aos aparelhos televisivos, era um festim visual ao serviço de uma narrativa atmosférica e encantatória que nos confrontava violentamente com temáticas da mais pura ficção-científica, através de uma intrincada estética retro/futurista, apresentando-nos um anti-herói que começava a história como o caçador, para a acabar como a presa. A sequência inicial, enriquecida pela música de Vangelis, transportava-nos imediatamente no tempo e no espaço. O cenário, no entanto, era industrial e deprimente, e quando descíamos às ruas o caos da urbe multicultural revelava a cidade como uma prisão a céu aberto. Quem aqui vive quer fugir, mas os androides que voltaram à Terra trazem com eles a vontade de viver. Se Harrison Ford transmite na perfeição o cansaço inerente à sua personagem, quem sabe se refletindo o seu humor nas filmagens, e a rigidez de Sean Young é ideal para o retrato de Rachel, as estrelas do elenco são os actores que interpretam os androides. O falecido Brion James como Leon tem uma interpretação ligeiramente descentrada, a fugir para o maníaca; Darryl Hannah como Pris é sedutora e dissimulada no espaço de uma mesma cena; Joanna Cassidy, como Zhora, é desinibida e atlética; e claro, o mítico Rutger Hauer parece ter nascido para interpretar Roy Batty, a icónica personagem que ajudou a imortalizar, não só com a sua interpretação, como com as palavras do celebrado monólogo final no momento da sua morte.
A referida banda sonora da autoria do compositor grego Vangelis é um elemento distintivo de Blade Runner, sendo parte integrante e importante do seu ADN. Logo na cena de abertura, os ambientais sons electrónicos são fundamentais no estabelecimento da atmosfera futurista em combinação com os deslumbrantes elementos visuais. Por certos padrões, a música pode ser considerada um pouco datada hoje em dia, mas quem cresceu com o filme não o consegue conceber com outro complemento sonoro. Mas foi preciso esperar mais de uma década após a estreia do filme para ser possível ouvir as composições originais de Vangelis. Durante anos, ouvi a minha cópia em vinil da interpretação da música com arranjos orquestrais pela New American Orchestra sem me aperceber que não era exactamente a música que ouvia no filme. Apesar de ser totalmente óbvio agora, na altura nunca me ocorreu comparar lado a lado a música e vivi parte da minha vida a ter uma experiência sonora que era, na melhor das hipóteses, apenas uma aproximação ao original. Por razões que me escapam, só em 1994, dois anos depois do Director’s Cut do filme ter reacendido o interesse do público por Blade Runner, é que Vangelis lançou a música original oficialmente. Ainda assim, a relação conturbada com esta banda sonora não terminaria aqui. Além da opção duvidosa de colocar diálogos por entre as peças musicais, a inclusão de faixas não usadas no filme, em detrimento de outras que dele fizeram parte, fez desta edição uma experiência agridoce e incompleta. Foi preciso esperar até 2007, a data do lançamento da versão definitiva do filme, para poder ouvir uma versão praticamente integral da banda sonora, na edição tripla de vigésimo quinto aniversário do álbum.
Mas recuemos novamente até ao princípio da década de noventa. Precisamente em 1990, a Warner Bros. autorizou a exibição de uma cópia em 70mm de Blade Runner descoberta no ano anterior nos arquivos da Todd-AO. Para surpresa de todos, a cópia exibida não era a versão tradicional, sendo que as alterações mais significativas eram a omissão da monocórdica narração em off e do descabido final feliz, ambos elementos impingidos originalmente pelos produtores. Aproveitando-se do interesse gerado pela cópia, a produtora agendou mais exibições promovendo-a como a versão do realizador, vulgo Director’s Cut — este foi mesmo o acontecimento que fez a expressão saltar do jargão técnico da indústria cinematográfica para o imaginário popular, alterando lentamente o seu significado original, que traduzia a visão artística e não adulterada de um realizador, num conceito comercial que, muitas vezes, significa que nos querem vir aos bolsos novamente apenas alguns meses depois de termos pago pelo bilhete de cinema. Ridley Scott repudiou esta versão negando ser a sua visão definitiva e explicou tratar-se de uma cópia de trabalho — na realidade, tratava-se da cópia exibida originalmente em Março de 1982 a audiências de teste nos estados de Dallas e Denver. Acontece que o interesse pela obra tinha reacendido irreversivelmente. A Warner Bros. decidiu então, sob a supervisão geral de Ridley Scott e a gestão directa de Michael Arick, um preservador e restaurador de filmes, lançar a versão Director’s Cut de Blade Runner em 1992, na celebração do seu décimo aniversário.
Em retrospectiva, pode parecer coisa pouca. Afinal, as alterações foram mínimas, sendo as de maior relevância precisamente a retirada da narração e do final feliz e a inclusão do sonho com o unicórnio. Porém este foi um acontecimento de importância incomensurável. De repente, um filme adorado por fiéis seguidores podia ser novamente redescoberto, ainda para mais numa versão de maior integridade artística que prometia alterar a nossa relação com a obra que conhecíamos originalmente. Entre novas edições em VHS e, finalmente, em DVD, esta versão foi substituindo a original como a visão canónica do seu realizador. Se ainda hoje debatemos os seus temas e antecipamos com expectativa a estreia de uma sequela que traz de volta os seus mais importantes colaboradores artísticos, é por causa da nova vida injectada pela cópia encontrada fortuitamente num armazém de arquivo há vinte e oito anos atrás.
Um dos debates reacendidos pela nova vida de Blade Runner — que, para ser totalmente honesto, nunca me interessou muito — questiona a verdadeira natureza de Rick Deckard, a personagem central de Harrison Ford. Confesso que, por incapacidade do filme em fazer essa pergunta ou por falta de percepção da minha parte, nunca questionei até então se Deckard seria ou não humano. Sempre encarei esta história como o confronto entre a desumanização do Homem e a natureza humanizante das máquinas, bem como a ténue fronteira que separa os dois. Desta forma, esta é uma questão que nem sequer colocava. Claro que é uma pergunta pertinente perante a temática do filme. Inclusivamente, é uma questão central no livro de Philip K. Dick. O problema, é que o filme de Ridley Scott nunca a colocou. A única referência ténue reside na questão que Rachel faz a Deckard, questionando-o se já se sujeitou alguma vez ao teste Voight-Kampff. E, mesmo depois da inclusão do sonho do unicórnio, é uma questão supérflua ao desenrolar da narrativa. Aliás, há um certo mistério enriquecedor no facto de não existir uma resposta — e esta é uma preocupação para o desenrolar da sequela pois temo que terão de providenciar uma explicação para satisfazer a narrativa. Mesmo entre os seus criadores, as opiniões dividem-se. Harrison Ford afirmou ter guiado o seu desempenho com o pressuposto que Deckard é humano, enquanto que Scott afirma taxativamente que Deckard é, sem sombra de dúvida, um andróide.
Não percam amanhã a quarta e última parte desta retrospectiva onde falo da derradeira e definitiva versão do realizador, o Final Cut de 2007, e antecipo a sequela de Denis Villeneuve.