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Especial Blade Runner: Perigo Iminente – O livro e a adaptação ao cinema

Em antecipação da estreia na quinta-feira de Blade Runner 2049, a aguardada sequela realizada por Denis Villeneuve de Blade Runner: Perigo Iminente, fazemos durante esta semana uma retrospectiva do prodigioso filme de Ridley Scott de 1982 que foi ganhando um estatuto unânime de clássico ao longo dos anos.

 

Não percam os outros artigos deste especial: Introdução

Novembro de 2019. Rick Deckard é uma personagem anacrónica que parece ter saído directamente de um film noir para as ruas encharcadas de uma Los Angeles multicultural e iluminada a néon. É um futuro negro e deprimente que convida a população a emigrar para outros mundos, prometendo aventuras e novas oportunidades. Mas, apesar dos seus carros voadores e do brilho dos reclamos publicitários, Deckard parece pertencer a outro tempo. A narração em off faz lembrar os detetives privados de antanho, tal como as fotografias de família a preto-e-branco. Fugazmente, vemos automóveis com linhas antiquadas e, numa ocasião, ouvimos música de cabaret. A missão que obriga o ex-polícia a sair da reforma coloca-o no encalço de um grupo de androides fugitivos —máquinas perfeitas, mais humanas que os Humanos. É uma tarefa ingrata e perigosa levada a cabo com relutância pelo agente especial. Pelo caminho cruza-se com Rachel, a femme fatale de serviço que, sem o saber, é também um androide, apesar das suas vívidas memórias de criança. A chocante revelação em nada altera a sua vontade de viver, nem a atracção que Deckard sente por ela. Serão estas máquinas o próximo passo da nossa evolução? Constituem uma ameaça à nossa existência? E o que nos distingue de um androide? É o ser humano o resultado da compilação das suas memórias e experiências, ou será algo mais? E será a consciência uma bênção para nós, mas um fardo para os humanoides não orgânicos? No final de contas, o conformismo da humanidade, satisfeita por meramente existir, é contrastado pelo inabalável desejo dos androides fugitivos de viver a vida ao máximo. Estes, numa demanda quási-religiosa, pretendem confrontar o criador para lhe exigir a vida eterna. Perante a negação de tal pedido, Roy Batty, o líder dos androides renegados, percebe o valor efémero da vida e, em última instância, oferece a Rick Deckard, aquele que o procura cegamente matar, uma lição de empatia e bondade.

Claro que tive de comprar o livro do filme na edição Livros de Bolso da Europa-América. O que descobri naquelas páginas mascaradas pela estética da sua adaptação cinematográfica não foi a sua recriação, mas sim um livro original do mestre consagrado da ficção-científica, Phillip K. Dick. Do Androids Dream of Electric Sheep? foi uma das minhas primeiras experiências de tomada de consciência do trabalho de adaptação de uma história ao grande ecrã. Os conceitos de base já estão presentes no texto. A personagem central Rick Deckard; a sua missão para capturar os androides fugitivos —dos quais sobrevivem Pris e Roy Batty —; o superior hierárquico de Rick, Harry Bryant; o engenheiro genético J. F. Sebastian — no livro John R. Isidore, um mero funcionário de um veterinário —; e Eldon e Rachel, criador dos humanoides robóticos e a sua suprema criação — no livro com o apelido Rosen em vez de Tyrell. As obras de Phillip K. Dick são ricas em ideias e temáticas que ajudaram a definir a ficção-científica do século passado, mas na adaptação deste romance muitos dos seus conceitos ficaram pelo caminho. Referências a uma Guerra Mundial que deu origem ao êxodo em massa do planeta Terra; animais de estimação orgânicos como símbolo de estatuto social, por oposição a indistinguíveis simulacros sintéticos; a figura religiosa Wilbur Mercer, que oferece uma experiencia de sofrimento comunal a quem se conecte virtualmente através de uma caixa de empatia; as máquinas de alteração de humor Pennfield, que alteram a disposição do utilizador à medida dos seus desejos; Iran, a mulher de Deckard — todos estes elementos ficaram de fora da adaptação.

A única cena que sobreviveu praticamente intacta foi o teste Voight-Kampff que Deckard administra a Rachel. Mesmo a temática da consciência e da difusa linha entre a vida humana e artificial tem uma abordagem completamente diferente do que aquela que acabaria na tela. Phillip K. Dick enquadra a missão de Deckard, bem como os seus sentimentos em relação aos androides, de um ponto de vista moral. É da lei dos homens que aqui falamos, e da sua capacidade (ou falta dela) para sentir empatia pelos demais. A crítica velada do autor é que estamos rodeados de pessoas sem capacidade empática, ou seja, é como se já estivéssemos rodeados de robôs com aspecto humano, com quem convivemos diariamente na ignorância acerca da sua natureza. A versão cinematográfica foi enriquecida com o ponto de vista dos androides, confrontando-nos com a forma contundente como estes procuram uma solução para uma das mais existenciais perguntas levantadas pela nossa breve passagem por este pequeno ponto azul: porque temos de morrer? No texto original Roy Batty e companhia são retratados como cobardes na hora da morte, resignando-se ao seu destino. Mas o Batty de Blade Runner não quer morrer e exige mais tempo de vida ao seu criador!

Esta livro proporcionou também a oportunidade de convivermos com o espectacular poster do filme num manuseável formato de bolso. Da autoria de John Alvin, o poster de Blade Runner é uma imagem icónica da minha juventude que capturou, na minha opinião, a sensação de perigo e emergência da narrativa, bem como o sentido de deslumbramento com as paisagens urbanas da Los Angeles futurista onde esta tem lugar e, ainda hoje, cumprimenta à entrada as visitas lá de casa. Alvin, a par de Drew Struzan, foi um dos responsáveis pela estética dos filmes americanos mais populares e marcantes da década de oitenta, criando também a arte de posters como E. T. – O Extra-Terrestre, Gremlins – O Pequeno Monstro, O Império do Sol, Willow – Na Terra da Magia ou A Pequena Sereia. Curiosamente, Struzan também trabalhou conceitos para Blade Runner que seriam rejeitados na altura, mas reaproveitados em 2007 para a capa do Final Cut de que falaremos mais à frente.

O filme de Ridley Scott deve o seu título ao tratamento de William S. Burroughs para uma adaptação do romance The Bladerunner, de Alan E. Nourse que nunca chegou a acontecer. O realizador gostou da forma como a expressão soava e assim o longo título do livro de Phillip K. Dick foi substituído pela icónica designação, apesar de esta ser vazia de significado. Tal como é demonstrado no documentário Dias Perigosos, um filme é um organismo vivo e mutante, e a sua forma final depende de muitos factores. A versão que estreou nos cinemas foi o resultado de muitas forças a puxarem em várias direcções e a serem domadas com dificuldade pela visão do decidido e intransigente timoneiro Scott. A primeira adaptação de Hampton Fancher foi trabalhada em conjunto com o realizador, mas quando aquele se revelou inflexível em relação a algumas propostas de alteração ao seu texto foi afastado e substituído por David Webb Peoples. Peoples rapidamente percebeu ter sido contratado, não para trazer ideias novas para a discussão, mas para converter no papel as contribuições do realizador contestadas pelo seu antecessor. As filmagens foram difíceis, com alguns choques culturais entre o exigente realizador britânico e a equipa técnica americana. Além disso, Harrison Ford teve a sua quota parte de desentendimentos com Scott. Quando uma cópia de trabalho inacabada é exibida a audiências de teste nos estados de Dallas e Denver, as reacções são tão negativas que a equipa volta ao trabalho de edição numa tentativa de afinar a versão final. Através de um pormenor técnico legal, os investidores Bud Yorkin e Jerry Perenchio afastam o realizador do trabalho de pós-produção e exigem que Ford grave uma narração para acrescentar ao filme, de forma a ajudar o público a entender a narrativa. Para adicionar insulto à injúria, exigem também o proverbial final feliz. A infame narração, gravada a contragosto pelo actor, apesar de ter conferido uma aura de film noir à narrativa, é intrusiva e redundante. E o final não só parece retirado de outra película completamente diferente, como utilizou literalmente cenas não usadas que Stanley Kubrik tinha filmado para o Shining. Esta foi a versão que estreou comercialmente em 1982 e que foi um fiasco de bilheteira e de crítica. Na realidade nesta data estrearam duas versões ligeiramente diferentes, pois os EUA tiveram as cenas mais violentas limadas, roubando alguns segundos à duração total, enquanto que a Europa viu integralmente esta versão do filme em todo o seu esplendor.

Não percam amanhã a terceira parte desta retrospectiva onde falo da nova vida que Blade Runner: Perigo Iminente ganhou com o Director’s Cut de 1992.

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Written by António Araújo

Cinéfilo, mascara-se de escritor nas horas vagas, para se revelar em noites de lua cheia como apaixonado podcaster.

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