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Especial Blade Runner: Perigo Iminente – Introdução

Em antecipação da estreia na quinta-feira de Blade Runner 2049, a aguardada sequela realizada por Denis Villeneuve de Blade Runner: Perigo Iminente, fazemos durante esta semana uma retrospectiva do prodigioso filme de Ridley Scott de 1982 que foi ganhando um estatuto unânime de clássico ao longo dos anos.

 

Nada é sagrado. Isto não é um juízo de valor, apenas uma mera constatação de um facto. Por muito que queiramos acreditar que existem obras intocáveis, a verdade é que a arte, bem como o seu papel na cultura popular, depende da busca vampírica por inspiração numa permanente reciclagem de ideias, conceitos e estéticas que refletem as perenes ansiedades e preocupações humanas. Apesar da globalização dos mercados e da enxurrada de títulos e propriedades intelectuais já conhecidos do público que são produzidos todos os anos, não se pense que esta reciclagem é uma tendência recente. Se recuarmos à infância do cinema, encontramos, por exemplo, duas versões distintas de Os Dez Mandamentos realizadas por Cecil B. DeMille. Howard Hawks refez o seu próprio clássico Rio Bravo oito anos depois com El Dorado. O percursor do moderno cinema de terror Psico, de Alfred Hitchcock, além de ter dado origem a várias sequelas na década de oitenta, foi alvo de um infame remake trinta e oito anos depois pelo realizador independente Gus Van Sant. Até o enigmático e incontornável 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, teve uma sequela — o competente, mas esquecido pelo tempo, 2010 – O Ano do Contacto, realizado por Peter Hyams. Já para não falar que grande parte destes títulos, e da habitual produção cinéfila, são adaptações de obras literárias, numa salutar prática de sinergias entre os dois distintos meios culturais.

Também é verdade que estamos a viver uma época movida pela nostalgia, e esta parece ser a principal motivação para a produção de muitos títulos, sejam eles adaptações, continuações, remakes, reboots ou reinterpretações de conceitos existentes. Neste contexto, adivinhava-se o regresso, mais cedo ou mais tarde, ao universo do Blade Runner: Perigo Iminente. Não porque se justifique narrativamente — o filme de Ridley Scott, nas suas muitas versões, conta uma história completa, ainda que tenha um final em aberto —, mas porque seria inevitável que assim acontecesse na conjectura que descrevi. Parece blasfémia, eu sei, mas como referi nada é sagrado. O estatuto de clássico que Blade Runner goza de forma unânime hoje em dia faz esquecer o facto que este foi um fiasco de bilheteira e crítica à data de estreia. A expressão «filme de culto», muitas vezes usada e abusada, encaixa que nem uma luva na história desta obra, incluindo as muitas vidas que foi ganhando ao longo dos tempos. A desilusão da recepção ao filme à data de estreia, após a sua produção atribulada, normalmente teria ditado o fim da história. Mas no caso de Blade Runner o seu lançamento no cinema foi apenas o início de um processo que beneficiou da expansão do mercado caseiro do VHS e que, exceptuando a sequela que se aproxima, só viria a concluir vinte e cinco anos depois com o lançamento nos cinemas da versão The Final Cut.

Cinco versões? Como é que isto é possível?, perguntarão os caros leitores. Para contar a história, permitam-me recuar até ao princípio da década de oitenta e começar pela minha experiência pessoal com Blade Runner. Um dos meus primeiros heróis da 7ª arte foi Harrison Ford. Como podia não ser? Era ele o Han Solo que conheci pela primeira vez congelado em carbonite em O Regresso de Jedi, o terceiro capítulo de A Guerra das Estrelas, e que, um ano mais tarde, reencontrei como o herói supremo da aventura em Indiana Jones e o Templo Perdido. Apesar de ainda não ter completado a primeira década de actividade, a minha mente cinéfila em formação decidiu que Harrison Ford era a estrela a seguir, pois estava no olho do furacão dos mais impressionantes títulos da minha tenra cinefilia. Entretanto um amigo mais velho contava que tinha assistido a um filme de ficção-científica protagonizado pelo actor. Chamava-se Blade Runner e prometia um retrato mais violento e adulto do que estava normalmente habituado. Na altura, através das descrições entusiasmadas do dito amigo, impressionou-me o retrato vívido de uma cena num prédio alto onde o herói sofria horrores nas mãos dos robôs que perseguia.

A minha imaginação, alimentada por estas narrações, tentava imaginar as cenas e preencher as lacunas do que ficava por dizer, mas nem podia sonhar com aquilo que vi quando finalmente me emprestaram uma cópia em VHS gravada de uma transmissão televisiva. O deslumbramento pelo visual futurista e pela lacónica interpretação de Harrison Ford, apimentada pela monocórdica narração em off, foi acompanhado por uma boa dose de surpresa perante o ritmo hipnótico e encantatório da narrativa. Nunca tinha visto nada assim! Pouco depois, numa das minhas primeiras compras no recente mercado de venda directa — o mais correcto seria dizer pedinchice pois não tinha idade para ter rendimentos próprios — consegui uma cópia do filme. Era uma edição Pan&Scan retalhada no hediondo formato de 4:3, inserida na coleção Os Mais da Warner Home Video, mas na altura foi como pão para a boca — durante alguns anos depois da estreia, quem, como eu, não teve a sorte (ou a idade apropriada) para o ver numa sala de cinema tinha de se contentar com esta edição ou, caso tivesse sorte, com uma ocasional transmissão televisiva, milagrosamente no formato original, com as malfadadas, mas inevitáveis, barras negras a ocupar parte do ecrã. Longe de ideal, no entanto, estas cópias eram a única forma de ver e rever uma das mais fascinantes obras de ficção científica recentes. E assim, era o feliz proprietário de um dos títulos mais cativantes que alguma vez tinha visto, se bem que este fascínio não se tenha traduzido imediatamente em total devoção. Esta viria com o tempo e com a idade…

Não percam amanhã a segunda parte desta retrospectiva onde falo do livro original de Philip K. Dick e do processo de adaptação ao cinema.

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Written by António Araújo

Cinéfilo, mascara-se de escritor nas horas vagas, para se revelar em noites de lua cheia como apaixonado podcaster.

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