“Hors normes” (em Portugal: Especiais) balanceia constantemente entre a leveza e a crueza, o humor e o drama, enquanto demonstra uma humanidade assinalável e aborda diversos temas relacionados com o autismo. A espaços fica a ideia de que pretende ser um raio de sol que derrete o gelo do pragmatismo. O problema é que em excesso esses raios provocam algumas queimaduras, que é como quem diz, os realizadores Olivier Nakache e Éric Toledano esforçam-se em demasia para apelar ao sentimento. Por vezes conseguem, fruto desses balões de humanidade que já mencionámos, bem como de um trabalho assinalável de Vincent Cassel e do restante elenco. No entanto, a banda sonora logo faz questão não só de sublinhar esse propósito de comover, mas também de dizer como o espectador se deve sentir. O que não impede “Hors normes” de efectivamente conseguir o seu propósito e embrenhar-se pelo interior de alguns casos mais intrincados de autismo, tendo as instituições de Bruno Haroche (Vincent Cassel) e Malik (Reda Kateb) como pano de fundo, em especial, a do primeiro, a La Voix des Justes. Esta não se encontra legalizada, ainda que funcione há vinte anos e apresente resultados bastante positivos, indo ao ponto de contar com o apoio de diversas entidades públicas e um papel fundamental na sociedade, algo que é exposto em diversos trechos da fita.
Não nos enganemos no que diz respeito a possíveis subtilezas. Olivier Nakache e Éric Toledano retratam negativamente as instituições oficiais destinadas a cuidar daqueles que padecem desta perturbação global do desenvolvimento. A dupla procura demonstrar o descaso ou a rigidez destas organizações e do Estado em relação aos casos mais intrincados de autismo, bem como uma certa incapacidade destas entidades quer para inovar nos tratamentos, quer para integrar estes homens e mulheres na sociedade quando chegam à idade adulta. É certo que “Hors normes” também explana os perigos da falta de recursos de instituições como a de Bruno, mas nunca de modo a desvanecer o mérito do trabalho deste elemento e da sua colectividade. O guarda-roupa reforça a simplicidade do protagonista, um traço que é sublinhado pelo desempenho meritório de Vincent Cassel. Subtileza, humanismo, sentimento e resiliência são alguns dos ingredientes que o intérprete e o argumento incutem à personagem. Mas o eterno Vinz de “La Haine” traz algo mais a esta figura. Faz com que acreditemos que estamos diante de alguém que é genuinamente boa pessoa, dedicado à sua causa e incapaz de dizer que não aos elementos de quem cuida.
A faceta calorosa do cuidador é paradigmaticamente notória na relação de enorme proximidade e cumplicidade que este mantém com Joseph, um adulto que sofre de autismo. Se Vincent Cassel é um intérprete experiente, já Benjamin Lesieur é um estreante que provoca espanto. Tal como diversos elementos que integram o elenco secundário do filme, o debutante padece de autismo. O que ele consegue fazer com a sua personagem é notável. Observe-se o modo bem vivo e sincero como expressa as especificidades desta figura que exibe uma enorme incapacidade para deixar de tocar no botão de segurança do metro. Estes episódios no meio de transporte provocam uma série de situações que varia entre o cómico e o tenso, um pouco à imagem do facto deste indivíduo ter de ser recordado de forma constante de que não pode bater na progenitora. Em determinado ponto do filme, encontramos Hélène (Hélène Vincent), a expor a sua preocupação sobre o futuro do rebento assim que ela faleça. Está decidida a tomar medidas drásticas, que logo são contrariadas com o auxílio de Bruno, com Vincent Cassel e Hélène Vincent a protagonizarem um trecho de enorme impacto. Tanto a La Voix des Justes como a L’Escale, de Malik, dedicam-se não só a cuidar de casos de crianças, adolescentes e adultos autistas, mas também a dar formação a vários jovens de bairros desfavorecidos ou considerados problemáticos.
Sim, “Hors normes” também se envolve por assuntos relacionados com a integração destes jovens na sociedade e o papel destas associações para que estes encontrem um rumo para as suas vidas. Tudo é abordado de forma simples, mas sentida, a espaços num tom quase documental. Note-se um jogo pontuado pelo bom humor entre os membros das duas instituições, ou um episódio onde são expostas as dinâmicas das aulas, com estes dois trechos a permitirem dar a conhecer algumas especificidades destas associações. Dos alunos, aquele que mais se destaca é Dylan (Bryan Mialoundama), um jovem adulto de parcas palavras que, aos poucos, desenvolve uma ligação com Valentin. Estreante nas lides cinematográficas, Marco Locatelli expõe com enorme naturalidade a dificuldade do seu Valentin em comunicar. Reda Kateb é outro dos elementos do elenco que tem espaço para sobressair. Este imprime seriedade, rigor e afabilidade ao seu Malik, um indivíduo que mantém uma relação de respeito e amizade com Bruno. Embora o argumento esteja longe de abordar a questão de forma complexa, o líder da L’Escale é muçulmano, ao passo que o impulsionador da La Voix des Justes é judeu, com “Hors normes” a deixar os conflitos de lado e a colocar-nos diante de uma amizade improvável na qual a defesa de uma causa maior permite o esbater das diferenças.
Pelo caminho somos colocados diante de um dilema moral: seguir as regras e não avançar no tratamento destes casos de autismo, ou transgredir as normas e evoluir ao ponto desses actos começarem a ser integrados na lei? A valia cinematográfica de um filme não pode por si só ser avaliada pelas mensagens que este transmite ou pela sua procura de despertar consciências. No entanto, é praticamente impossível escamotear a pertinência e a relevância dos assuntos abordados por esta película. A reunião de culturas, as amizades improváveis e a confluência da leveza e da amargura são componentes transversais entre “Hors normes” e outros trabalhos de Olivier Nakache e Éric Toledano, tais como “Intouchables”. Na obra a ser alvo deste texto o duo teve como fonte de inspiração a Le Silence des Justes e a Le Relais DF, duas colectividades que sobressaíram pelo seu trabalho meritório. Os objectivos de “Hors normes” também são nobres, com as suas limitações a nunca deixarem de lado a certeza de que estamos perante um filme extremamente humano e caloroso.
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