A realizadora Lúcia Murat esteve no FESTin para apresentar “Praça Paris”, uma co-produção entre o Brasil e Portugal que conta com Grace Passô e Joana de Verona no elenco principal. A Take Cinema Magazine aproveitou a presença da realizadora em Lisboa para falar um pouco sobre o filme. Ao longo da entrevista foram abordados assuntos relacionados com a pesquisa efectuada para abordar a temática da contratransferência, o trabalho de Grace Passô, a parceria com a Fado Filmes, entre outros temas.
Take Cinema Magazine: A Camila começa a transferir os problemas da paciente para o interior da sua mente, uma situação que a leva a começar a temer tudo e todos. Os efeitos da contratransferência não costumam ser muito abordados no cinema brasileiro. Como é que surgiu a ideia de retratar este tema e qual foi o trabalho de pesquisa que efectuou para abordar o mesmo?
Lúcia Murat: Na verdade esse tema surge de um facto real. Tenho uma amiga psicanalista que coordenava um centro de terapia para carentes numa universidade. Normalmente esses centros de terapia são compostos por alunos de mestrado, ou do último ano da licenciatura. No caso era uma universidade particular em que as pessoas eram de alta classe média. Ela contou-me que estavam a ter alguns casos de contratransferências. Ao entrarem em contacto com pessoas que tinham uma vivência de violência muito pesada, algumas jovens de alta classe média começaram a ter muito medo de sair à rua, sentiam-se perseguidas. A minha amiga até fez um trabalho sobre isso. Na ocasião pensei que isso poderia dar um filme interessante, que eu poderia transformar num thriller e exacerbar esse tipo de sentimento. Isso foi naquele período de violência no Rio de Janeiro, ainda antes da instalação das UPPs. Depois de instaladas as UPPs teve um primeiro momento em que parecia que ia ter um início de pacificação – não que eu acreditasse nisso. Os chefes do tráfico foram presos, ou foram para a baixada fluminense, libertando aquela zona. Quando eu decidi fazer o filme foi quando o fracasso das UPPs estava claro e estava a recomeçar a situação de violência nas favelas.
Tivemos um psicanalista que nos auxiliou no argumento. Fizemos uma pesquisa muito grande no Morro da Providência e é impressionante como as coisas mudam muito rapidamente. Quando começámos a fazer a pesquisa já estava claro o fracasso nas UPPs, mas ainda era uma situação em que podíamos subir no Morro. Eu e uma menina que trabalha na produtora conseguimos subir sem autorização de ninguém, fizemos pesquisa, conversámos com pessoas das ONGs. Quando fomos filmar a situação já estava tão exacerbada que nem conseguimos filmar no Morro. Só fizemos a abertura ali em baixo e mesmo assim foi dificílimo, a negociação foi complicada. No dia em que fomos filmar até apareceram uns tipos armados. Já estava tudo a explodir.
TCM: O argumento é assinado pela Lúcia Murat e pelo Raphael Montes. O quanto é que existe de cada um no interior do argumento?
LM: O argumento era meu a partir dessa situação em que conversei com a minha amiga. Eu tinha o argumento e o Raphael tinha acabado de lançar uns livros. É um autor muito jovem que fez sucesso com alguns livros de terror, thrillers e afins. Eu queria alguém que me ajudasse nessa questão de género. Eu não trabalho muito com género. Foi muito interessante, trabalhámos juntos, fizemos pesquisa, discutíamos ideias, foi bem compartilhado. Ele deu boas ideias em algumas cenas das quais eu gosto muito, tais como a do elevador.
TCM: “Praça Paris” deixa-nos perante a visão do outro sobre o Rio de Janeiro e do olhar de quem vive no território desde sempre, algo que se repercute nas dinâmicas das duas personagens. Já tinha pensado numa actriz que vinha de fora como a Joana de Verona para interpretar a psicanalista?
LM: A ideia original era uma menina de alta classe média do Rio. Quando pensei em desenvolver um thriller, eu resolvi exacerbar. Uma pessoa de fora tem aquele olhar ainda mais estrangeiro em relação àquela situação e achei que poderia desenvolver melhor o thriller a partir de uma pessoa estrangeira. Aí entrei em contacto com a Fado Filmes e fechámos uma parceria. A partir daí a ideia passou por ter uma actriz portuguesa. Fizemos alguns testes e escolhemos a Joana de Verona.
TCM: Qual foi a importância dessa parceria com a Fado Filmes para o “Praça Paris” sair do papel? Como surgiu essa parceria?
LM: Foi muito importante. Entrei em contacto com o Luís Galvão Teles. Nós já nos conhecíamos. Fiz a proposta e apresentei o argumento. Ele gostou do argumento e a partir daí tentámos o acordo Brasil-Portugal e ganhámos. Isso foi muito importante para viabilizar o filme do ponto de vista do orçamento. Foi muito bom, temos uma relação muito boa. O produtor-executivo João Fonseca trabalhou muito no filme. Fez parte da equipa. O som e a câmara vieram daqui. A mixagem de som também foi feita aqui. Foi uma contribuição muito grande. Nós sempre conversávamos muito.
TCM: A Grace Passô imprime uma postura séria e credível à sua personagem, uma mulher desafortunada, que praticamente não conheceu o calor humano, algo que se reflecte nos seus comportamentos. O quanto é que as qualidades de Grace Passô como actriz contribuíram para a forte presença desta personagem?
LM: Muito. Ela foi fundamental. Aquele olhar dela é fantástico. Você nunca sabe muito bem o que vai acontecer. Você tem medo dela, tem afecto por ela. A Grace deixa-te numa situação de insegurança que é maravilhosa. A densidade dela como actriz permite isso. Trabalhámos bastante, fizemos quase um mês de ensaios com uma preparadora de elenco. Foi um trabalho muito bom. É mesmo um trabalho de actriz, a Grace não tem essa experiência de vida. Ela vem de outra cidade, nomeadamente, Belo Horizonte. Não tinha experiência em favela nem nada. O trabalho da Grace como actriz dá uma dimensão muito maior à personagem. Você sai do esquematismo e do maniqueísmo em função do que ela contribui.
TCM: A Joana de Verona e a Grace Passô têm uma dinâmica muito convincente. Essa dinâmica foi trabalhada nos ensaios que você mencionou?
LM: Foi nos ensaios. No outro dia eu até falei que a Folha de São Paulo tinha-me pedido o capítulo para colocar na Ilustrada, onde às vezes colocam argumentos. É impressionante a diferença. Não na essência. Uma das cenas que mais gosto do filme é aquela em que elas discutem depois que a Glória é agredida pela polícia e têm aquele diálogo em que a personagem interpretada pela Grace diz “Eu achei que era você. Eu achei que era rica e bonitinha”. A maneira como ela fala “rica e bonitinha” estava lá escrito, mas a Grace dá dimensão àquilo. A frase final, que é muito boa, em que ela diz “você ainda acha que eu deva denunciar” foi uma coisa que foi criada nos ensaios. É impressionante a diferença que você sente entre aquele argumento seco e a vida que você alcança no filme em função da contribuição dos ensaios e de toda a discussão que tivemos.
TCM: O Rio de Janeiro que é apresentado em “Praça Paris” é um território marcado pelas dicotomias, seja entre o branco e o negro, ou no tratamento efectuado pela polícia, ou o próprio espaço da favela em relação aos outros locais. Quais foram os principais desafios para captar e transmitir esta realidade do território?
LM: Acho que existe uma dicotomia, mas ao mesmo tempo também existe uma presença do negro no filme inteiro. Você tem estudantes negros a entrarem e a sair da UERJ, ou na polícia. E isso é o Brasil. Você tem um racismo tremendo, que evidenciamos no momento em que a personagem da Joana começa a ficar histérica e com medo do rapaz que a tenta auxiliar. Acho que o grande desafio foi fugir ao esquematismo. Conseguimos fugir a esse esquematismo com a contribuição dos actores e os ensaios. É um problema de produção filmar hoje em dia em favelas, mas conseguimos sempre escapar a isso.
TCM: Num determinado momento do “Praça Paris” encontramos a Camila a imaginar que está a ser alvo de violência, com o trabalho de câmara e de som a contribuir para exacerbar a paranóia e a inquietação que percorre a protagonista. Pode falar-nos um pouco da gravação dessa cena e do trabalho que efectuou com o seu director de fotografia (Guillermo Nieto) e com o departamento de som para criar este ambiente de suspense e paranóia em volta do enredo?
LM: Primeiro tivemos um problema grande de produção. Pretendíamos filmar no topo de uma favela, que é onde normalmente esse tipo de situações acontecem. Aí uma das facções apareceu, começou a cobrar e foi algo complicado. Desistimos de filmar aí. Não íamos arriscar a vida de ninguém para fazer o filme. Então descobrimos uma fábrica abandonada, onde íamos fazer a exposição. Mas tinha espaços nessa fábrica abandonada que beiravam um pouco o terror, então propuseram que se fizesse ali. Era totalmente diferente da ideia inicial, que era fazer num descampado e era próximo da realidade que eu conhecia, mas acho que essa decisão cenográfica foi muito boa para dar ao espectador essa sensação de medo. Trabalhámos muito nesse espaço e com as sombras.
O som foi basicamente na construção final na edição de som (no Brasil) e mixagem (em Portugal). Acho que foi uma construção sonora muito interessante. A própria banda sonora é feita de ruídos. O conjunto dos sons é uma mistura da edição de som de ruídos com o que veio da música. Você nem consegue distinguir bem o que vem dos ruídos e da música.
TCM: O cinema brasileiro tem sido bastante bem recebido nos festivais internacionais. Ainda recentemente teve uma participação meritória em Berlim. Podemos dizer que, apesar da crise política e social, o cinema brasileiro está a conhecer uma fase de grande fulgor?
LM: Tem uma geração mais nova – da qual a minha filha faz parte – que é muito boa. Desde o Cinema Novo que não temos uma geração em que enquanto geração tem uma proposta de desenvolver um cinema de identidade e de desenvolver novas linguagens. Num determinado momento acho que houve uma política de apoio a essa geração. Até àquele momento você tinha apoios para as produtoras ou para as comédias, ou para casos como o meu em que já tinha uma “estrada”. Era muito difícil você ter apoios para novas linguagens e realizadores. Houve uma política de Estado que foi muito importante para fortalecer essa geração e esse tipo de propostas. E foi exactamente esse tipo de propostas que acabou por ter sucesso nos festivais internacionais. Hoje em dia estamos com medo porque estão a ocorrer mudanças sérias na ANCINE, que podem levar a que isso desapareça. Estamos num momento de transição por lá no qual nos encontramos a lutar muito para que se mantenha o apoio a essa política.
TCM: Na entrevista ao AdoroCinema você comentou o seguinte: “Eu fui presa política e torturada, então a questão da paranóia e do medo é algo que conheço“. Como é que alguém que sentiu na pele a violência da ditadura encara a situação política no Brasil e o crescimento da extrema-direita no cenário político internacional?
LM: Com muito medo, com muita paranóia. Para a minha geração é uma situação muito difícil. Num determinado momento fomos derrotados na proposta, mas posteriormente o processo de Redemocratização do Brasil foi fundamental para a gente. Foi quando recomeçámos a nossa vida. Esse retrocesso já está a acontecer. Acho que isso também tem muito a ver com falhas, tais como não ter existido tanta preocupação com a questão da educação e da educação política. A Bolsa Família e a integração dos miseráveis na sociedade brasileira foram fundamentais, mas acho que fundamentalmente tem que existir uma preocupação com a educação. Se não o que acontece é que chega a um determinado momento em que começa a crise e você não tem apoio. Mesmo essas pessoas estão a querer apenas comprar televisão e frigorífico. É um pouco o que se vive hoje. Temos no Brasil um crescimento de um candidato de extrema-direita, o Bolsonaro, que faz declarações totalmente absurdas e estapafúrdias. Ele tem um apoio muito grande, inclusive na classe média universitária. É a fantasia de que você está a viver uma crise e os militares vão colocar uma ordem no caos, essa fantasia de que a ordem vai colocar ordem no caos. Acho que é uma fantasia recorrente na História Mundial. Foi uma fantasia no Século XX que levou à tragédia que conhecemos na Europa. Foi uma fantasia que levou às ditaduras latino-americanas. Era o medo. O medo faz coisas terríveis.
TCM: Já conta com mais trabalhos em desenvolvimento?
LM: Estou a trabalhar numa série sobre violações dos direitos indígenas a partir do Relatório Figueiredo. São doze episódios sobre doze etnias diferentes. Engloba o Brasil inteiro. Acho que é muito interessante porque sempre pensamos na extinção das tribos e etnias como um processo que se deu na colonização, mas o Relatório Figueiredo mostra que isso se dá muito na marcha para Oeste no Século XX. É quando realmente você tem situações de uma violência absurda, tais como bombardearem aldeias, ou atirarem roupa com vírus para matar. Foi um genocídio praticado muito recentemente. Para o segundo semestre já estou com um projecto de um novo filme que se chama “Ana”, que é um fake documentary sobre mulheres latino-americanas artistas plásticas. É uma espécie de road movie na América Latina.
TCM: Muito obrigado por conceder esta entrevista.