Escritor, músico e cineasta, F.J. Ossang conta com uma série de obras de respeito, tais como “9 Doigts” (9 Dedos), a sua nova longa-metragem, um noir com ingredientes de aventura marítima. O realizador esteve em Portugal para promover o filme, algo que foi encarado pela Take Cinema Magazine como uma oportunidade única para entrevistá-lo. A entrevista decorreu no interior dos escritórios da O Som e a Fúria, a co-produtora da fita, tendo sido marcada pela disponibilidade, simpatia e expressividade desta figura singular do cinema francês. Ossang começou por salientar que fala francês, inglês e espanhol. Ainda sabia falar um pouco da nossa língua, ainda que, como salientou, “em Madrid e sobretudo na América do Sul perdi o meu português” (risos). No entanto a presença nos Açores não foi esquecida, “Fui pela primeira primeira vez aos Açores em 1988. Em 1989 filmei “Le trésor des îles chiennes”, em Cinemascope, a preto e branco. O filme vai ser restaurado. Sou fascinado pelos Açores. A reunião entre os três continentes. Nesses tempos era muito mais difícil do que agora, nomeadamente, do ponto de vista material. Mas fui muito feliz. Então, voltei para os Açores para filmar o meu primeiro filme neste espaço, ‘Dharma Guns’, também em preto e branco“.
Outro dos territórios onde “9 Doigts” foi filmado é Biarritz. Em entrevista ao canal do International Film Festival Rotterdam, F.J. Ossang realçou o clima tempestuoso deste lugar, algo que nos levou a querer saber um pouco mais. De acordo com o cineasta, “Já estava presente no argumento que precisávamos de temperatura de inverno. Por acaso filmámos em Biarritz. O filme entrou em produção e tivemos de começar a filmar rapidamente. Não podíamos perder dinheiro. Nós filmámos duas semanas em França. O tempo era terrível. Para ires de carro de Paris a Biarritz tinhas de fazer três ou quatro quilómetros a mais. As inundações eram imensas. No entanto, a tempestade foi muito boa para o filme“. Ainda no campo dos líquidos e da Sétima Arte, decidimos colocar o realizador perante o célebre comentário que efectuou ao À Pala de Walsh, em particular, “o verdadeiro cinema é como gin tónico” e questioná-lo sobre a preparação desta bebida noir com ecos de aventura marítima: “Para mim o bom cinema, aquele que eu gosto, é como um psicotrópico. Coloca-te em outro estado, um pouco como o álcool. Eu gosto bastante de cinema. Algumas boas ideias dos meus filmes resultam frequentemente de beber duas noites. E, depois, começo a escrever (enquanto isso, simula de forma bem viva o processo de escrever). Por vezes, é bom. Desta vez tinha de me apressar, pois tinha uma semana para terminar. Saiu do fundo do coração, da minha alma. Decidi fazer um filme sobre barcos porque sempre fui fascinado pelas histórias do capitão Frederick Marryat e de Joseph Conrad, então no ‘9 Doigts’ existe quase sempre um grande fantasma a um canto, o Marryat“.
Em determinados momentos do filme podemos encontrar alguns ecos de outras obras noir, tais como “The Lady From Shanghai”, em particular, os trechos do aquário, ou “Kiss Me Deadly” (a ameaça radioactiva): “todos os meus filmes contam com um aquário. Gostava muitos desses filmes quando era novo. Penso que são muito mais interessantes do que muitos filmes feitos nos dias de hoje. Alguns dos meus filmes contam com a presença do veneno e da radiação. Para mim é um privilégio poder filmar em preto e branco. O filme pode ter sido difícil de produzir, mas contei com uma boa equipa e bons actores“. Sobre a presença de diversos ingredientes dos noir, tais como o forte contraste entre luz e sombras, a atmosfera de malaise e a escolha de alguns ângulos e o papel de Simon Roca na cinematografia para esse ambiente, F.J. Ossang salientou que “quase todos os meus filmes são a preto e branco. Tive uma excelente colaboração com o Simon Roca. Ele foi fotógrafo. Esta é a sua primeira longa-metragem em película, tem um grande sentido de adaptação. Foi uma grande revelação“.
Esse grande “olho” para escolher directores de fotografia não vem de agora, ou Darius Khondji não tivesse sido um colaborador do realizador: “o ‘Le trésor des îles chiennes’ foi o seu primeiro filme, tal como foi a primeira obra do Jean-Vincent Puzos (design de produção). Os dois reuniram-se recentemente no ‘The Lost City of Z’ do James Gray. Como tenho uma retrospectiva em Nova Iorque, escrevi para o Darius Khondji. Ele pretende efectuar a restauração do ‘Le trésor des îles chiennes’. A nossa relação não mudou muito. Não escrevemos todos os dias um para o outro, mas continuamos amigos“. A fotografia e o design de produção também assumem uma especial relevância quando os elementos do gang estão no interior do barco. Por exemplo, o momento em que o tecto parece enclausurar o protagonista, algo que acentua a paranóia e a sensação de claustrofobia, com o trabalho de Rafael Mathé a sobressair. “Tive muita sorte com o Rafael Mathé. É um brasileiro que estudou na La Fémis. Este é o seu primeiro filme. Inicialmente comecei a trabalhar com o Jean-Vincent Puzos, vim a Portugal com ele e chegámos a ver os cenários. No entanto, ele ficou ocupado com outro filme. O Rafael Mathé acabou por ser escolhido. Foi formidável. Eu queria que ele transmitisse os barulhos do barco e interpretasse aquilo que eu pretendia. Ele é capaz de ouvir algo”.
A escrita e a música também fazem parte da vida do realizador. Será que o F.J. Ossang músico e escritor influência o F.J. Ossang realizador? “Não sei. Comecei a escrever bastante novo. Entrei na música aos dezoito ou dezanove anos. No caso dos filmes tinha de conseguir dinheiro para os fazer. São experiências diferentes. É bom praticar coisas diferentes, mas o cinema é o cinema, é uma experiência pura“. O segundo e o terceiro acto de “9 Doigts” são marcados pela forma muito própria como os diversos elementos encaram a passagem do tempo. Em entrevista ao Mubi, F.J. Ossang demonstrou o seu fascínio pelos “mistérios do tempo”, uma situação que nos levou a questionar como este controla esses mistérios e se a experiência como músico contribui para esse domínio: “Eu tento, mas não controlo. O cinema e a música têm muito em comum, ainda que sejam diferentes. É mais próximo da música do que a pintura. Tudo é ritmo. Estive muitas das vezes obcecado sobre o porquê de cinco minutos poderem ser vinte minutos num filme. Numa curta, dez minutos podem parecer muito longos. Para mim o cinema é uma experiência boa e estranha, uma jornada rumo ao desconhecido. Por vezes somos surpreendidos pelos resultados. É como escrever todos os capítulos de um livro e ler os mesmos. No cinema – não no cinema digital -, tu filmas, mas não corriges. Não é como a literatura, a pintura ou a música. Tens apenas a montagem, a interpretação. As filmagens são uma experiência única“.
Uma experiência única é o que podemos chamar ao desfecho de “9 Doigts”, com F.J. Ossang a contrastar os longos diálogos do segundo e terceiro acto com um curto e sonoro “bang”, um disparo que termina com uma vida e o enredo. Terá sido o lado punk do realizador a falar mais alto? A pergunta gerou uma onda de risos e a resposta foi pronta: “é um momento marcante do filme. Ele (Magloire) vem do nada e o nada vem ter com ele. É obrigado a adaptar-se. Eles falam, falam, falam e então bang. Vê o polónio e dispara”. Sobre o trabalho com Paul Hamy e a escrita do protagonista, o cineasta referiu que “quando escrevo o argumento não estou a pensar em algum actor em específico. O tempo de preparação é muito importante. Por vezes até é mais difícil do que as filmagens. O nome de Magloire é uma homenagem a um grande poeta do Haiti, o Magloire St. Aude. Tem três pequenos livros de poesia que são maravilhosos, o ‘Tabou’, ‘Déchu’ e ‘Dialogue des mes lamps’. Fica entre o Mallarmé, o abstracionismo francês e ainda mistura vudu. Não é muito famoso, mas deveria ser. No ‘Docteur Chance’ também fiz uma referência do género. Um dos personagens chama-se Georg Trakl (Francisco Reyes) em homenagem ao poeta homónimo austríaco, que faleceu com vinte e sete anos devido a uma overdose de cocaína. Eu gosto de literatura e de fazer homenagens a pessoas que gosto”.
As referências a pessoas e a elementos de outros filmes não ficam por aqui, algo notório quando encontramos um personagem chamado Warner Oland, ou o barco: “na minha segunda curta-metragem, ‘Zona Inquinata’, que filmei em 1983, existe um barco chamado Sri Ahmed Volkenson 5 (o nome inicial do barco em ‘9 Doigts’). Temos ainda o Marryat, que remete para o escritor Frederick Marryat“. Da literatura passámos para o cinema francês contemporâneo, mais precisamente no que diz respeito à opinião do realizador em relação ao cinema francês contemporâneo e ao modo como “9 Doigts” se integra no mesmo: “Não sei [como se integra]. Eu faço os meus filmes. Penso que o cinema francês sobrevive porque não só produzimos muito cinema banal, mas também temos nomes que marcaram o cinema e a sua História, tais como Jacques Tati, Robert Bresson, Jean-Pierre Melville, entre outros. Mas muitos filmes franceses não são interessantes. É a indústria“. Quem tem sido distinguido pela sua contribuição para o cinema é F.J. Ossang, em particular, com uma série de retrospectivas, uma situação que nos conduziu a perguntar a opinião do cineasta sobre as mesmas: “É bom. Os meus filmes têm um pequeno público bastante fervoroso, mas podem desaparecer. É um meio das pessoas poderem descobrir os filmes e de poder mostrá-los“. E assim terminou a entrevista a este cineasta que recentemente venceu o Prémio de Melhor Realizador no Festival de Locarno.
Créditos da fotografia: Patrick Mendes.