Filme-denúncia duro, onde a felicidade raramente é sentida, a redenção é improvável de ser alcançada e a desesperança percorre os seus poros, “Carga” é uma das agradáveis surpresas do panorama cinematográfico nacional em 2018. O filme estreou originalmente a 8 de Novembro do corrente ano, tendo efectuado um percurso interessante em circuito comercial. A Take Cinema Magazine teve a oportunidade de entrevistar o realizador Bruno Gascon sobre a sua primeira longa-metragem. Ao longo da entrevista foram abordados assuntos relacionados com o que compeliu o cineasta a abordar o tema do tráfico humano, o trabalho de preparação com o elenco, a escolha dos cenários, entre outros assuntos.
Take Cinema Magazine: O Bruno Gascon escreveu o argumento de todos os filmes que realizou. Sente que essa é uma forma de manter os seus projectos mais pessoais? Como é que o “Bruno Gascon realizador” convive com o “Bruno Gascon argumentista” e vice-versa? Pode falar um pouco do seu processo de escrita?
Bruno Gascon: É sempre mais pessoal quando é algo que é escrito por mim, claro. Por vezes é desafiante porque nem sempre tudo o que escrevemos é viável do ponto de vista da realização e nesse sentido tenho que fazer cedências como argumentista para bem do filme. Por outro lado, acaba por ser uma vantagem porque quando chega a hora de filmar garantidamente sei o que quero fazer e qual era a intenção de cada cena quando a escrevi e permite-me também conseguir lidar melhor com imprevistos que levem a eventuais alterações durante a filmagem. Quanto ao processo de escrita, antes de escrever seja o que for investigo bastante e, sobretudo, falo com algumas pessoas ligadas ao tema sobre o qual vou escrever, mas na verdade o essencial para mim é perceber de que forma eu, ou as pessoas que me rodeiam reagiriam a determinadas situações de forma a conseguir que o argumento se torne o mais real possível. Acima de tudo é um trabalho de observação.
TCM: Sabemos que já respondeu a esta questão várias vezes. No entanto, é praticamente impossível deixar de perguntar. O que o compeliu a abordar a temática do tráfico humano? Pode falar um pouco do trabalho que efectuou para pesquisar elementos sobre o assunto?
BG: Quando estudei em Amesterdão foi algo com que tive contacto, pois o tráfico para fins sexuais era algo bastante frequente, portanto já existia um interesse pelo tema. Ao regressar a Portugal comecei a trabalhar sobretudo na área documental e pude ter contacto com sobreviventes e as suas histórias ficaram-me na memória e inspiraram-me a pesquisar mais e a escrever o guião da Carga. Em termos de pesquisa foi muito importante esse background e também tudo o que pude ler sobre o tema. De igual modo foi muito importante ouvir o lado de quem trabalha no resgate às vítimas, ou seja, a Associação para o Planeamento da Família que se tornaram parceiros do filme. Queria que o argumento e o filme levassem a que as pessoas se colocassem nos sapatos de quem passa por esta situação (tanto das vítimas como dos traficantes e que as personagens tivessem zonas cinzentas levando a que o espectador saísse do cinema a pensar que isto não só acontece, como lhe poderia acontecer a ele.
TCM: Os espaços frios e pouco acolhedores onde as vítimas estão em cativeiro contribuem imenso quer para a atmosfera de desesperança que marca uma parte considerável do enredo, quer para sublinhar a violência a que estes imigrantes estão sujeitos. Como é que surgiu a escolha deste cenário? O quanto é que o seu trabalho com JP Caldeano contribuiu para realçar a faceta fria deste espaço?
BG: Tinha uma ideia muito nítida de onde queria que as acções se passassem, dos tons em que queria o filme, sendo que o azul deveria ser o dominante e da estética dos planos. No que diz respeito às locations, a Serra da Estrela, por exemplo, desde o início foi o meu local de eleição porque queria que a sua frieza e grandiosidade transmitissem e acentuassem a sensação de isolamento a que as personagens estavam sujeitas. No caso do cenário principal, ou seja, do Colégio de São Fiel onde grande parte da acção se passa foi um local que surgiu após investigar bastante e ter finalmente encontrado este local em Louriçal do Campo que se adequava à história e à energia que procurava. O Colégio de São Fiel era não só grandioso, como tinha uma arquitectura adequada ao que pretendia filmar. Claro que essa frieza foi acentuada pela direcção de arte, pelo guarda-roupa, pelo trabalho do departamento de imagem e iluminação e, claro, depois da filmagem foi essencial o trabalho da editora e do colorista para conseguirmos alcançar o look que eu pretendia.
TCM: O elenco apresenta enorme competência, embora nomes como Michalina Olszanska, Vítor Norte, Dmitry Bogomolov e Rita Blanco estejam em maior destaque. Qual foi o trabalho que efectuou com estes elementos na preparação dos personagens? Foi um desafio preparar o papel duplo de Michalina Olszanska?
BG: Trabalhar com os actores é algo que me dá sempre muito prazer, especialmente quando existe um entendimento tão grande como houve com este elenco. Uma das partes mais importantes deste filme foi precisamente a relação criada com eles e as muitas conversas sobre o tema e sobre as personagens, o seu passado, de onde vieram, o que as tinha levado a ser assim, a sua experiência… No fundo, trabalhámos muito a vertente psicológica de cada uma delas porque isso teria influência directa na forma existiriam em cena. Tudo isso facilitou o processo de filmagem. No caso da dupla personagem da Michalina foi muito interessante podermos trabalhar duas pessoas tão diferentes, mas que a determinado momento são levadas a um mesmo destino por serem envolvidas naquela rede, ambas acabam por mudar de forma irremediável. Foi incrível o trabalho que ela fez.
TCM: Um dos momentos mais emotivos de “Carga” acontece quando o personagem interpretado por Vítor Norte expressa o que vai no interior da sua alma junto de Viktoriya. Pode falar um pouco daquilo que os intérpretes deram aos personagens nesta ocasião muito específica e como decorreram as filmagens deste trecho?
BG: O monólogo do António é um acto de cobardia, pois ele apenas confessa o que lhe vai na alma, pois sabe que ela não o vai entender. Esta falha de comunicação era algo que nos interessava explorar pois devido à utilização das três línguas no filme conseguíamos mostrar as barreiras que se criam entre povos e culturas diferentes. O Vítor Norte é um actor incrível e soube pegar no texto e apropriar-se dele fazendo daquele momento um acto de expiação do António perante a Viktoriya e perante si mesmo. Recordo-me que as filmagens foram feitas durante a noite em Belmonte e que após a cena houve um silêncio profundo devido ao impacto que teve em todos nós.
TCM: A certa altura do filme fica a ideia de que o Bruno Gascon pretende colocar o espectador perante uma realidade que este nem sempre quer confrontar, seja através daquilo que é exposto no campo ou no fora de campo. Foi algo propositado ou estou apenas a divagar? Procurou estimular uma faceta mais activa do espectador em relação ao combate a estes crimes?
BG: É precisamente isso. Está na hora de termos a noção de que isto nos rodeia, que acontece em todo o mundo e que por vezes basta estarmos atentos para podermos ajudar alguém. O filme tem como base o “Podias ser tu” precisamente por isso, para existir essa consciencialização.
TCM: Outra ideia que fica é a de que pretendeu dar poder às personagens femininas, algo que atribui maior complexidade às mesmas e ao filme. Sente que ainda falta percorrer um longo caminho para mudar as mentalidades no que diz respeito à representação da mulher em filmes do género?
BG: É verdade. A minha intenção era dar o poder às mulheres, pois em filmes deste género por norma o poder está do lado masculino. O meu objectivo era inverter esses papéis. Acredito que ainda existe um longo caminho no que diz respeito à representação da mulher em filmes, no entanto, nos últimos anos fizeram-se alguns avanços e têm surgido filmes com personagens do sexo feminino bastante fortes.
TCM: O filme resultou também num livro da autoria de Vasco Cortese. O Bruno Gascon teve algum envolvimento no desenvolvimento no livro? O que é que existe de transversal e distinto entre as duas obras?
BG: Estive envolvido desde o início no processo. A escrita do Vasco Cortese parte precisamente da leitura do argumento e visionamento do filme. Depois disso tivemos várias conversas e tal como com os actores falámos sobre o passado das personagens e as suas características psicológicas. O livro e o filme acabam por ser diferentes, pois são as visões de duas pessoas sobre o mesmo tema, no entanto complementam-se na medida em que no livro encontramos mais sobre o passado de algumas personagens (nomeadamente as personagens de origem russa), por exemplo.
TCM: Muito obrigado pela disponibilidade demonstrada a responder às nossas questões.