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Ele Vem à Noite

de Trey Edward Shults

muito bom

Trey Edward Shults é um dos novos nomes do terror contemporâneo que oferece, em Ele Vem à Noite, uma narrativa apocalíptica recheada de tensão e ambiguidade.

 

O título português da segunda longa-metragem de Trey Edward Shults, Ele Vem à Noite, perde a ambiguidade do original It Comes at Night pela inexistência na nossa língua de artigo equivalente ao «it» do inglês. O que virá aí pela noite? E nem sequer é um ele ou uma ela? Será algo indistinto? Ou será que é uma coisa indescritível? O escritor e realizador, depois de se estrear em 2015 com Krisha, um drama familiar, iniciou a escrita de Ele Vem à Noite como uma forma de lidar com a dor da morte recente do pai. O resultado foi uma obra enraizada nas regras do filme de terror que poderá alienar os fãs mais dedicados do género, afastando por outro lado, espectadores que dispensem as emoções fortes.

Paul (Joel Edgerton), a sua mulher Sarah (Carmen Ejogo) e o filho adolescente de ambos, Travis (Kelvin Harrison Jr.), refugiaram-se numa casa isolada na floresta na sequência de um surto de uma mortífera e altamente contagiosa doença. Quando o pai de Sarah, Bud, a contrai, eles matam-no por misericórdia e queimam o seu corpo numa sepultura improvisada. Na noite seguinte, capturam um intruso que tentava entrar na casa. Paul amarra-o a uma árvore durante a noite para confirmar que ele não contraiu a doença. O desconhecido, que se apresenta como Will (Christopher Abbott), explica que apenas procurava água fresca e mantimentos para a mulher (Riley Keough) e o filho. Sarah sugere aceitar a família de Will na casa, argumentando que, quanto mais pessoas forem, mais fácil será defenderem-se de possíveis ataques.

O primeiro trunfo de Trey Edward Shults é a qualidade da escrita do argumento. Nada é oferecido ao espectador de bandeja e o desenvolvimento narrativo tem um ritmo muito deliberado que reflecte o estado de tensão e permanente vigília que caracteriza todas as acções da família de Paul, bem como a sua própria ignorância em relação às causas ou origens do surto de que fogem. Adicionalmente, o filme abre com um momento chocante onde Paul obriga o filho a participar no sacrifício do avô, momento que o traumatiza. Esta cena é uma demonstração imediata do sentido deliberado da encenação de Shults, tirando proveito do cada vez menos utilizado formato panorâmico 2.35:1, que se torna ainda mais estreito nas feéricas e perturbadoras cenas em que partilhamos os pesadelos de Travis.

Joel Edgerton, que também aparece nos créditos como produtor executivo, tem aqui um papel de prosaico estoicismo, muito longe do glamour de um qualquer papel de herói. A sua relação com Travis é algo distante e fria, com o adolescente a encontrar conforto no sobrevivente cão do avô, ao invés dos pais. Esta tensão familiar oferece verosimilhança a um cenário que normalmente abdica destas subtilezas, e Shults adopta o ponto de vista de Travis como porta de entrada para o espectador para este universo.

Quando Will, Kim e Andrew se juntam à família, a preocupação maior de Paul prende-se com as regras básicas da casa e com a definição de um sistema que garanta a ordem e, mais importante que tudo, a sobrevivência. Por seu lado, as atenções de Travis centram-se em Kim, reflexo natural da única presença feminina, além da mãe, em fase hormonal tão atribulada como a adolescência. Quando a porta vermelha que dá acesso à casa, e que deve estar sempre fechada durante a noite, é encontrada aberta por Travis, a frágil relação que se estabeleceu entre as duas famílias é colocada à prova.

Qualquer fã do género de terror passa parte do seu tempo a defendê-lo, incluindo a sua validade, junto dos demais, argumentando que um bom filme de terror é, na verdade, um bom filme e ponto final. Um bom filme de terror pode ser subtil, inteligente, artístico, emocional — e porque não haveria de sê-lo? O problema é que, por vezes, os fãs de terror são os seus piores inimigos, e foi isso que aconteceu com Ele Vem à Noite, acusado por muitos de não ser assustador ou violento ou perturbante. Isto porque Ele Vem à Noite é, na essência, um estudo sobre o medo, e muitas das formas que este toma. O medo do desconhecido, da doença, da morte, ou até dos nossos instintos e impulsos mais básicos. É um filme tenso e desconfortável sobre perda e mortalidade que vive e respira a um ritmo muito próprio mas intensamente cinematográfico.

Tornam-se óbvias as referências do seu autor, que se diz inspirado no quadro O Triunfo da Morte, do pintor belga Pieter Bruegel, o Velho — não é por acaso a sua aparição proeminente no filme —, bem como nos cineastas Paul Thomas Anderson e John Cassavetes, ou nos filmes A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero ou Shining, de Stanley Kubrick. Estamos mais perto do onírico sobrenatural deste e da claustrofobia desesperada daquele do que de qualquer outro título apocalíptico tradicional. Ele Vem à Noite pode ser frustrante ou inconsequente para alguns, mas Trey Edward Shults demonstra ser um jovem cineasta perfeitamente em controlo do meio e revela-se como uma promessa a seguir com atenção, independentemente dos constrangimentos do género que optar por filmar a seguir.

Ah! E afinal o que vem à noite? Resta ao leitor ver o filme e tirar as suas próprias conclusões…

Review overview

Summary

Ele Vem à Noite pode ser frustrante ou inconsequente para alguns, mas Trey Edward Shults demonstra ser um jovem cineasta perfeitamente em controlo do meio e revela-se como uma promessa a seguir com atenção, independentemente dos constrangimentos do género que optar por filmar a seguir.

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
4 10 muito bom

Comentários

Written by António Araújo

Cinéfilo, mascara-se de escritor nas horas vagas, para se revelar em noites de lua cheia como apaixonado podcaster.

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