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[Doclisboa 2018] Les tombeaux sans noms

de Rithy Panh

excelente

Rithy Panh sabe utilizar o poder da imagem e da palavra de forma sublime. Se dúvidas existissem, “Les tombeaux sans noms” está aqui para as dissipar por completo, bem como para demonstrar a perícia do cineasta a revisitar as memórias de um passado que ainda se encontra bem vivo no âmago do seu povo. Em determinado momento do documentário encontramos um machado a embater contra uma árvore. Não sai apenas madeira, mas também sangue. É uma maneira simultaneamente poética e dura de Rithy Panh explanar o quanto o território de Trum contém no interior do seu corpo e da sua alma uma série de feridas por sarar. Estas foram abertas pelas várias atrocidades cometidas neste espaço durante o Regime do Khmer Vermelho. Nas suas areias podemos encontrar pedaços de ossos, memórias perdidas, uma certa desilusão e a ilusão de um possível reencontro com os espíritos daqueles cujos corpos foram enterrados em lugar incerto. Foi precisamente para Trum que o cineasta foi deportado em 1976 com a sua família. Onze membros deste núcleo familiar partiram de Phnom Pehn, mas apenas dois elementos sobreviveram, algo que deixou marcas no realizador. Nesse sentido, “Les tombeaux sans noms” resulta em parte da decisão deste regressar ao local para onde foi deportado tendo em vista a efetuar uma busca espiritual e pessoal, enquanto revisita a História do seu país e deste espaço.

No início do filme ficamos perante um ritual que visa um certo contacto com os espíritos. Um contacto que pode ou não acontecer e mexe com o nosso lado mais pragmático, com “Les tombeaux sans noms” a convidar-nos a conhecer uma série de rituais e crenças que remetem não só para a religião, mas também para um profundo desejo de um povo em comunicar com os seus ancestrais, com a sua identidade e sarar feridas profundas. Ao convocar os espíritos, Rithy Panh traz também o passado para o presente. Para isso recorre a entrevistas a alguns dos sobreviventes destes massacres, enquanto exibe ser exímio quer a extrair profundidade do discurso dos entrevistados, quer a utilizar essas palavras bem vivas e descritivas para compelir o espectador a sentir estas memórias quase como se fossem suas. Claro que é impossível de acontecer, até por nunca termos sentido a fome, a dor, a violência e o desespero que estes homens e mulheres sentiram. No entanto, podemos nutrir empatia e perceber o impacto daquilo que visualizamos através destes elementos. As privações, a violência, a morte e o desespero surgem bem patentes nestas falas, bem como a sensação de um certo vazio e uma tristeza própria de quem sentiu na pele as atrocidades cometidas pelos Khmer Vermelhos.

Onde estão os corpos daqueles que faleceram? Rithy Panh não sabe onde estão enterrados os restos mortais do pai e dos sobrinhos, nem o local em que se encontra situado o túmulo comunal no qual se encontram a sua mãe e as suas irmãs. Tal como ele, muitos outros encontram-se nesta situação, algo que podemos observar ao longo do filme, sobretudo durante as práticas quase mágicas que alguns elementos efectuam para chegarem a um ponto de diálogo com os mortos. O que terá acontecido a estes? Continuarão a vaguear pelo território? O que é certo é que acima de tudo quem procura encontrar paz em “Les tombeaux sans noms” são os vivos. Aqueles que não se esquecem dos mortos, que conservam as memórias de outrora e a sensação de que algo está incompleto nas suas vidas. Será que a descoberta dos corpos contribuiria para trazer algum conforto? Se os encararmos como o último reduto físico de alguém que conservamos no nosso interior é provável que traga uma certa sensação de paz interior. Não é para prestar culto aos mortos e contactar espiritualmente com os mesmos ou recordar a sua existência que continuamos a manter os corpos em cemitérios? Nesse sentido, torna-se fácil compreender algumas das figuras que conhecemos ao longo do documentário.

A banda sonora de Marc Marder contribui para a toada melancólica que pontua o documentário, um pouco à imagem das palavras dotadas de lirismo e sentimento que são emitidas pelo narrador, uma espécie de duplo do cineasta. Se em “L’image manquante” este chegou a recorrer a bonecos de argila para preencher as imagens que faltam do Cambodja durante o Regime do Khmer Vermelho, já em “Les tombeaux sans noms” utiliza fotografias, figuras de madeira, máscaras, roupas e outros elementos para atribuir uma dimensão física a algo ou alguém que se encontra a vaguear sem rumo pelas memórias e as areias da história do território. Estes elementos contribuem para dar corpo a algo que já não está no lugar que é apresentado, embora regularmente consigamos sentir a dor que marcou e marca este espaço de características rurais. Rithy Panh continua assim a recuperar as memórias dolorosas do seu país e a expor o quanto as feridas desta nação ainda estão por sarar. Quando e como vão cicatrizar é algo que apenas o tempo pode dizer. No entanto, não serão esquecidas, com esta viagem espiritual a confirmar a habilidade do cineasta em trazer ao de cima o passado do seu território. Um passado que também é do realizador. Um passado que continua a dialogar com o presente. Um passado que dialoga com o espectador. Um passado que não pode, nem deve, ser esquecido.

Review overview

Summary

Rithy Panh utiliza o poder da imagem e da palavra de forma sublime.

Ratings in depth

  • Produção
  • Realização
  • Argumento
4.65 10 excelente

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