A presença colonial francesa em Madagáscar ainda continua bem viva nas memórias de diversos habitantes desta nação insular. Em “Fahavalo, Madagascar 1947” a realizadora Marie Clémence Andriamonta-Paes regressa a um pedaço dessas memórias que marcaram a identidade e a História do seu país, em particular, a revolta malgaxe contra as autoridades coloniais gaulesas. A rebelião ocorreu entre 1947 e 1948, tendo resultado em fortes medidas repressivas da França e num número elevado de mortos. Marie Clémence Andriamonta-Paes revisita estes anos a partir da fala de diversos sobreviventes que recordam as suas experiências. “Existem algumas coisas que não consigo esquecer. Vou tentar contar aquilo que aconteceu. Não fique surpreendida no caso de algumas coisas escorregarem da minha mente ou parecerem enlameadas” diz Martial Korambelo à realizadora. Um dos participantes na insurreição, Martial esteve preso oito anos e nove meses, sendo um dos vários elementos que permitem a “Fahavalo, Madagascar 1947” apanhar o comboio do passado e transportá-lo para o presente a partir das recordações e das palavras daqueles que sobreviveram.
Todas as nossas memórias encontram-se rodeadas por uma névoa de subjectividade inerente ao facto de conterem no seu interior o modo como percepcionamos diversos acontecimentos das nossas vidas. Esta subjectividade resulta a favor de “Fahavalo, Madagascar 1947” ao contribuir para que o documentário aborde o contexto histórico e alguns eventos marcantes a partir da perspectiva muito particular daqueles que a viveram de perto. Note-se o caso de Iamby, um indivíduo de idade avançada que acredita no poder dos talismãs e das poções. Não é situação para menos. Se o contingente francês, pontuado pela presença senegalesa e argelina, contava com armamento pesado e mortal, já os guerrilheiros malgaxes tinham apenas ao seu dispor lanças, machetes, a magia e o desejo de se tornarem independentes. O combate era extremamente desigual, sendo marcado pela violência das forças gaulesas, algo notório quando encontramos os relatos da destruição e dos massacres provocados pelos colonialistas. Diga-se que o ressentimento e a desilusão fazem parte do discurso de Iamby, sobretudo para com a França e a atitude de alguns elementos de Nosy Varika que apoiaram os gauleses.
Como nasceu esta insurreição? A partir das falas de uma série de entrevistados podemos perceber a desilusão de um número elevado de malgaxes por Charles De Gaule não ter concedido a independência a Madagáscar após o término da II Guerra Mundial. Diversos habitantes da então colónia francesa combateram pela França contra a Alemanha, algo que provocou legítimas ambições junto dos primeiros. Porém, ao terminar o conflito estes elementos foram novamente remetidos para o estatuto de indígenas e aos trabalhos que tinham anteriormente, uma situação que potenciou ainda mais a revolta e os desejos independentistas. Nem todos eram acometidos por este sentimento. Observe-se o comentário de um dos convidados sobre as denúncias que eram feitas entre madagascarenses, ou a subserviência de Boto Chef D’Office, um indivíduo que apoiou as autoridades francesas contra os rebeldes. A inclusão das palavras deste último permite que Marie Clémence Andriamonta-Paes explane algumas das especificidades que envolveram esta luta pela independência, enquanto somos surpreendidos perante a adesão do madagascarense aos ideais colonialistas.
Outra das entrevistadas que sobressai é a pragmática Marie Njiva, uma veterana que cuidou do bebé do irmão e apresenta uma atitude racional a comentar a forma distinta como alguns dos seus concidadão encararam o conflito com a França. Importa ainda realçar as falas de uma mestiça que expõe quer a maneira como os seus sentimentos se encontravam divididos na época, quer um desconhecimento notório em relação aos motivos que conduziram à revolta dos malgaxes. Estes discursos são seguidos, acompanhados ou entrecortados por fotografias ou vídeos deste período, ou trechos filmados nos espaços onde se desenrolaram alguns episódios relatados ou que constam nos materiais utilizados para o documentário. Note-se quando encontramos um jovem a cortar uma cana, ou uma mulher a cozinhar em utensílios tradicionais, dois episódios que conversam directamente com vídeos de arquivo e permitem sublinhar a permanência de diversos hábitos no interior do território de Madagáscar.
Se essas ligações entre o presente e o passado são efectuadas com pertinência e eficácia, já o mesmo nem sempre pode ser dito em relação à exposição do contexto político da época. Por vezes fica a faltar mais conteúdo sobre o MDRM e os diversos intervenientes políticos, ou informação relacionada com os espaços onde decorreram os episódios mencionados ao longo do documentário. Já a inserção do significado dos termos utilizados pelos entrevistados surge como um recurso relativamente didáctico que enriquece a obra, com a realizadora a deixar-nos perante expressões como “fahavalo” (inimigo), “vazaha” (branco; europeu; francês), “tabataba” (turbulência política; a insurreição de 1947), entre outras. Diga-se que o título do filme remete precisamente para o estatuto de inimigos da França que os revoltosos receberam por parte dos gauleses. Ao observarmos os discursos destes homens e mulheres ficamos não só diante da realidade dos madagascarenses durante este período, mas também dos actos repressivos dos franceses e do quanto estes acontecimentos marcaram o povo de Madagáscar, com o documentário realizado por Marie Clémence Andriamonta-Paes a ter o condão de resgatar as memórias de um episódio fundamental da História deste país e de expor o quanto algumas feridas coloniais ainda continuam por sarar.
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Summary
Ao observarmos os discursos destes homens e mulheres ficamos não só diante da realidade dos madagascarenses durante este período, mas também dos actos repressivos dos franceses e do quanto estes acontecimentos marcaram o povo de Madagáscar, com o documentário realizado por Marie Clémence Andriamonta-Paes a ter o condão de resgatar as memórias de um episódio fundamental da História deste país e de expor o quanto algumas feridas coloniais ainda continuam por sarar.
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