Gaspar Noé não está preocupado em contar uma história certinha ou em deixar-nos diante de um enredo demasiado elaborado. Está ainda menos interessado em desenvolver os personagens. Acima de tudo quer proporcionar-nos uma experiência. E “Clímax” é uma experiência cinematográfica que estimula as sensações, prende os sentimentos e arrasta-nos para o interior de um lugar onde a euforia pode dar lugar ao desespero, a libertação ser tomada pela opressão e uma sangria ser conspurcada por LSD. Desse néctar adulterado, não pelos Deuses, mas pela acção humana, resulta a inebriação, a fuga às barreiras que seguram a razão. Com esses alicerces quebrados, a saudável loucura da primeira fase do filme, sublinhada por uma miríade de danças onde os corpos e a câmara se soltam com vigor, é contrastada pelo avançar da violência física e verbal.
Actos loucos ocorrem enquanto Gaspar Noé deixa os seus actores e actrizes à solta e constrói toda uma atmosfera opressora que os envolve e ao espectador. Este é um dos maiores méritos do cineasta. A sua capacidade de nos fazer sentir. Primeiro, a euforia da dança, uma libertação a que assistimos entre a passividade de quem está sentado na cadeira e o fulgor de quem está a receber uma onda de energia musical, dançante, vibrante. Posteriormente, o receio, o medo do que pode a acontecer. A tonalidade vermelha, associada num primeiro momento de “Clímax” a uma certa vivacidade e erotismo, a um fulgor libertador e a uma afirmação da personalidade, continua a ser sentida na segunda fase da fita. No entanto, aparece ligada ao perigo, à cólera e ao descontrolar dos sentidos. Suspeitas são lançadas sobre quem conspurcou a sangria, diálogos acalorados são mantidos e a confusão instala-se. Daqui em diante o sexo, a violência, a confiança e a desconfiança dominam os gestos e as palavras.
A espaços lá entram de rompante alguns comentários, quais intertítulos godardianos prontos a penetrarem sem aviso. Temos ainda a aparição dos créditos iniciais a meio da fita, pontuados por um tom extravagante e a capacidade de marcarem a transição para uma fase distinta do enredo. Gaspar Noé é um provocador e volta a demonstrar isso mesmo. É cineasta que dispensa a indiferença. Tudo é para ser sentido, mesmo quando o argumento demonstra ser constituído por um fiapo ténue onde a dança e a música contam com um papel de relevo, tal como as inquietações dos personagens, seja a sua vontade de viver e desfrutar dos prazeres efémeros ou os seus receios mais profundos. Ao recorrer a um elenco composto maioritariamente por intérpretes amadores ou estreantes, com a excepção de Sofia Boutella, bem como a diálogos maioritariamente improvisados, o realizador busca e alcança a criação de algo palpável, que soa real dentro do ficcional, enquanto nos apresenta a um grupo heterogéneo de personagens.
Emmanuelle (Claude-Emmanuelle Gajan-Maull) é uma mãe solteira que procura cuidar de Tito, o seu filho, um petiz, no meio desta festa. Foi esta quem preparou a sangria, algo que a leva a ser considerada a principal suspeita de ter inserido LSD na bebida. David (Romain Guillermic) não esconde o desejo de se envolver com Psyche (Thea Carla Schott) e Ivana (Sharleen Temple), bem como com todas as mulheres que encontra. Por sua vez, estas apresentam alguns problemas de relacionamento. Daddy (Kiddy Smile) é o DJ de serviço. Gazelle (Giselle Palmer) e Taylor são irmãos, com este último a apresentar uma faceta demasiado controladora. Selva (Sofia Boutella) emana um carisma natural e sobressai em diversas ocasiões. Lou (Souheila Yacoub) é relativamente próxima desta última e guarda um segredo que aos poucos explica alguns dos seus comportamentos. Cyborg (Alexandre Moreau) e Rocco são dois amigos cujos temas de conversa versam sobretudo o sexo e as mulheres. Ficamos a conhecer brevemente alguns traços da personalidade de cada um. Nada de transcendente, mas o suficiente para permitir ao elenco demonstrar que não compromete na arte do improviso e da interpretação.
Mas o grande destaque vai mesmo para Gaspar Noé. Para a sua câmara esvoaçante, determinada a sublinhar a inquietação, a desestabilizar, a percorrer o mar de emoções e a seguir os diversos personagens. Para a eficácia a usar o fora de campo e a fazer com que este contamine o campo. Para o modo preciso como usa as cores, sobretudo a tonalidade vermelha. Para a competência com que os números de dança são coreografados de maneira a que as palpitações de quem dança e o seu estado de espírito seja transmitido a quem observa. Para a capacidade de criar algo livre de amarras, um filme solto de imaginação, que fervilha irreverência e pulsa. Não sangue, mas sensações fortes. Daquelas que deixam marca. Uma marca inebriante, provocada pela impressão de que participámos de uma experiência que nos levou do êxtase ao desespero, um pouco à imagem do que aconteceu a estas homens e mulheres aos quais somos apresentados no inicio do filme.
Nesses vídeos de apresentação falam sobre a dança e a França, das drogas e dos seus medos. Ao longo de “Clímax” assistimos ao despir da alma de cada um através da dança. Da dança e não só. Mas no final é praticamente impossível não ficar impressionado pelos números de dança e pela forma como estes se adequam a toda uma faceta disruptiva de Gaspar Noé. Este contagia-nos até chegarmos ao cume, ao clímax de prazer cinéfilo, aquele que sentimos após termos bebido esta sangria cinematográfica que mistura ingredientes arrojados e uma perícia notória a agitar os nossos sentidos.
Review overview
Summary
Uma experiência cinematográfica que estimula as sensações, prende os sentimentos e arrasta-nos para o interior de um lugar onde a euforia pode dar lugar ao desespero, a libertação ser tomada pela opressão e uma sangria ser conspurcada por LSD.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização