IndieLisboa 2016 – 24 e 28 Abril, Filme de Destaque – Sessões Especiais
A adoração tanto pelo artista como pelo seu prolífico trabalho atrás da lente tem corrido rios, mares e oceanos. De nome Manoel Cândido Pinto de Oliveira, também conhecido por “O Mestre”, o realizador que viveu 106 anos e sobreviveu 88 de trabalho na passada Páscoa de 2015, recebeu nada mais do que o tratamento de uma estrela de rock pelo seu aprendiz e amigo de longa duração João Botelho na apresentação do documentário dedicado ao seu confident. Um testemunho mais do que uma homenagem, O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu é, tal como o título indica, sobre a relação entre ambos e de que forma o cinema a originou. Nele, João Botelho conta as recordações de uma memória reescrita, e invoca um testamento de gratitude e admiração que, bem na tradição do cinema português, queima lentamente mas providencia o tipo de arsenal na sua transparência que facilmente irá permitir que sobreviva ao duro teste do tempo.
Escusado será dizer de que esta foi uma sessão especial, porque já saberíamos que o seria, ou não teria a organização do festival incluído a sua estreia nacional no centro das suas Sessões Especiais. Botelho, entusiasmado ao ver uma sala cheia, deixou bem claro que este seria um trabalho para nós também. “Ah, e há uma surpresa no fim. Espero que gostem.” – disse, sorrindo e dando por completo o seu discurso introdutório. A sua voz rapidamente emergiu outra vez, mas agora no grande ecrã. Aí começou ele a contar, com a mesma claridade e orgulho que um adulto recorda o seu grande primeiro amor de juventude, as várias etapas em que a vida do Mestre se cruzou com a dele, recorrendo à ajuda de uma foto tirada 36 anos previamente.
Daí em diante evoca a memória de Conversa Acabada com João César Monteiro, um dos filmes primordiais que marcou o início da sua carreira onde Oliveira interpreta um padre, este que é antecedido por vários excertos de filmes do seu mentor – Amor de Perdição, Vale Abraão, Palavra e Utopia – que cuidadosamente se misturam numa antologia de trabalho (a maior parte restaurado) marcado pela clarividência melancólica que o futuro era certo a trazer consigo. Mas é a análise de Botelho do trabalho do Mestre que mais reacção emocional gera. O longo “plano Oliveira”, a faustosidade da sua paleta de cor, o cinema-tempo e o cinema-movimento, a ficção e realidade, a energia que a Invicta carrega no desenvolvimento dos seus projectos. Por esta altura e ao meu redor, o grande auditório no Culturgest em Lisboa resplandecia na sua relação com as imagens que tantas vezes foram analisadas pelos nossos olhos, não só como cinéfilos incorrigíveis, mas cidadãos portugueses e aclamadores da propagação da sua cultura. Ali caminhávamos nós pela agridoce estrada da memória, lentamente por cima do texto que a voz determinada de João Botelho deixava passar.
Mas isto seria só o início. A “surpresa” que se segue, a surpresa que Botelho nos falou anteriormente, confirmou que não tínhamos saído das nossas casas para assistir a um segundo funeral. Aqui, Botelho propõe-se à derradeira prova de dedicação e ousadia em filmar a história que Oliveira amava sobre uma prostituta, mas que o tempo não permitiu que nos mostrasse. Retirando a importância à nova moda do formato documental, Botelho reafirma o seu filme, com este segundo acto de uma beleza verdadeiramente desconcertante, como um filme dentro de um filme, um documentário/ficção que de igual forma glorifica a memória do radicalismo cinéfilo, dá-lhe as asas da imortalidade e, mais importante ainda, combate a hipocrisia subliminar que foi tema de conversa aquando da morte do nosso patrimonial artista. Com o título A Rapariga das Luvas, através do argumento de Oliveira – que o tinha intitulado de “Prostituição ou a mulher que passa” – , e num preto e branco palpável, remontamos à nuvem eterna do cinema mudo, onde é a narrativa e não o som que comanda (a única fonte de acompanhamento musical é do delicado piano de Nicholas McNair). Neste pequeno presente, ouvimos Botelho falar com Oliveira através do seu trabalho, este que interioriza o espelho no qual mergulhamos aqui do homem que matou o escritor e filmou o teatro filmado, que se estende e fala com o seu protegido independentemente de já não residir no nosso meio. Oliveira filma então através dos olhos atentos de Botelho. E este último repousa o seu talento e entrega-o às mãos daquele que pela primeira vez o guiou. Afinal, um homem só realmente morre quando o seu nome é pela última vez pronunciado, e é difícil acreditar num mundo em que o nome de Oliveira não irá ecoar vinte, trinta ou quarenta anos daqui em diante.
Seja o espectador artista ou não, escritor ou não, a relação de Oliveira e de Botelho como mentor e aprendiz irá mover o coração até do mais não crente no cinema de ambos. Uma repreensão ao preconceito da idade, o filme estende-se, tal como o próprio homem, numa cápsula do tempo enterrada na memória daqueles que a fizeram e agora a desterram deleitando-se sobre as suas reflexões só ali coerentes. Não é a carta dirigida ao “Querido espectador” que talvez tivéssemos como melhor aposta nesta 13º Edição do IndieLisboa, é melhor! É uma viagem narrativa sob a forma de álbum de recortes intransigentemente conectado com o elo que a sala escura concede em todos nós ali sentados sem pensar no que aconteceu antes de ali chegarmos, ou no que a vida nos trará depois dos créditos finais rolarem. É a rendição emocional daquilo que o artista é, tudo o que sempre foi, do João Botelho que retoma à citação ilustre de Oliveira onde este fala do seu amor ao cinema, não aos filmes, e dá-lhe uso aqui.
O filme acaba, a sala ecoa as palmas dos espectadores. Mas eu não as ouço. Por cima do ruído, a voz de Maria Isabel de Oliveira que canta o poema de Abílio de Guerra Junqueira, “Regresso ao Lar”, durante o famoso excerto de Porto da minha Infância, ultrapassa as pessoas e as luzes que lentamente voltam a si naquele grande auditório. E aí um pensamento se materializa. O Porto de Manoel de Oliveira era o seu porto seguro tal como o Porto perto do qual cresci e onde voltarei num caso de semanas é o meu, agora também um porto seguro de todos aqueles que nunca ouviram falar da cidade ou falam a língua, e terão ali, naquela sala, vislumbrado. É engraçado pensar que o rio objectivo que corre por O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu é na realidade sobre o ser espectador, sobre o amante do cinema que, mesmo incompreendido, dá a vida a esse amor. E por isso, e porque me incluo nessa trajectória, trago de volta uma observação referida a determinada altura no filme, concluindo aqui esta pequena apreciação: aplaudiremos com os pés porque com as mãos não é suficiente.
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!…
Foi há vinte?… Há trinta?… Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!…
Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida…
Só achei enganos, decepções, pesar…
Oh, a ingénua alma tão desiludida!…
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!…
Review overview
Summary
Um retrato honesto e resplandecente, João Botelho eleva o seu desejo de criar o antídoto do tempo de Manoel de Oliveira na Terra. Fala dessa loucura que é o cinema, e fá-lo aqui evocando a omnisciência do seu mestre. O conhecimento ou a falta dele pelo cinema de Oliveira em nada irá prejudicar a sua absorção. É uma recordação de uma história contada e feita para ser ouvida.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização