A primeira coisa que irá fazer confusão a quem vir Contratiempo, e não estiver familiarizado com o mais recente cinema comercial espanhol, são as insistentes marcas americanizadas na produção e no desenvolvimento da narrativa. Nota-se, da cabeça aos pés, que se trata de uma produção altamente industrial, e que cumpre vários dos “requisitos” que mais rapidamente associamos a um thriller norte-americano.
Não são raros os momentos em que sentimos que estamos a ver um filme com uma alma que mais pertence ao cinema dos states, algo que é também visível, num plano mais formal, na escolha da montagem e dos planos de câmara, bem como na direcção de fotografia, a fazer lembrar David Fincher e o seu Gone Girl (que por si só era apenas “mais um” exemplo da formatação que o thriller tem sofrido na indústria de Hollywood).
Torna-se, por isso, evidente reparar que, neste e noutros filmes incluídos no Cinefiesta, se regista um sintoma do cinema espanhol a querer internacionalizar a sua indústria, tornando-a mais apelativa, visual e formalmente falando, aos ditames hollywoodescos. Para o bem ou para o mal, o que é certo é que, apesar dessas intenções, começa-se a notar um renovado interesse do nosso país vizinho por este género cinematográfico, e com alguns resultados bem interessantes (dois outros exemplos a reter: Que Dios Nos Perdone, cheiinho de clichés mas divertido, e El Hombre De Las Mil Caras, já analisado por aqui).
E apesar disso, Contratiempo destaca-se por conseguir, no meio da mecanização, sair com uma alma própria, espelhada na vontade de se fazer cinema de género que vá além do consumo da pipoca. E tal como um filme algo semelhante que é um clássico do cinema espanhol (Morte de un Ciclista, de Juan Antonio Bardem), as características americanizadas não danificam o espírito do argumento, atribuindo-lhe antes uma atmosfera sombria apropriada, e não em piloto automático, que por ser construída com elegância, só auxilia os efeitos pretendidos pela narrativa, bem como o jogo constante de mentiras e ilusões que esta nos propõe.
Contratiempo foi um dos grandes êxitos de bilheteira do cinema espanhol de 2017, e consegue ser um thriller imprevisível, com uma narrativa minuciosamente confeccionada, sem fazer pouco da inteligência dos espectadores nem enveredando pelo caminho mais fácil: o do choque puro e duro conseguido por um desencadear de acontecimentos anedóticos – é assim que o género tem sido tão mal tratado na actualidade.
Talvez o que faz um bom thriller seja a receita deste filme: pelo desvendar das escassas peças de um puzzle, em que uma solução aparentemente simples de um mistério se vai revelando a mais bicuda das situações, e pela forma como o espectador é levado a ser constantemente enganado pelas personagens – e não esquecendo o lado cinematográfico da questão, porque o cinema não se limita à narrativa e o realizador Oriol Paulo não se esquece disso (mesmo que a tal formatação fincheriana se imponha em demasia de quando em vez).
Podemos dizer que há um grande equívoco a descobrir em Contratiempo: é que apesar de ter saído bem engomado de uma máquina de produção que quer igualar Hollywood, não tendo por isso uma identidade puramente nacional, acaba por funcionar por si próprio, e por não ceder totalmente aos ditames das narrativas convencionais ou ilusoriamente intrincadas dos exemplos norte-americanos. É por isso que nos arriscamos a dizer que este é um filme que fará inveja a Fincher – ou que ele gostaria de ter feito.
Review overview
Summary
Contratiempo é um thriller imprevisível, com uma narrativa minuciosamente confeccionada, e que em nada fica a dever aos clássicos do género em que se inspira.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização