Shane Black em modo Kiss Kiss Bang Bang redux com um Ryan Goslin inspirado e uma miúda de 13 anos a roubar o protagonismo.
Shane Black foi, por um momento, o argumentista-estrela de filmes de acção em Hollywood. Em 1987, não só aparece como actor a interpretar o papel de Hawkins em O Predador, o mega-sucesso de acção de ficção-científica com Arnold Schwarzenegger, como é responsável pelo argumento de Arma Mortífera, o policial de Richard Donner que define as regras do buddy cop movie, à falta de boa designação em português, dali em diante. Arma Mortífera, não só cimentou a carreira de Mel Gibson como originou três sequelas, progressivamente mais inclinadas para a comédia. Revendo o original é surpreendente o tom sério e negro da premissa que emparelha um polícia depressivo e suicida com um veterano homem de família no encalço de um bando de contrabandistas de droga. Com o sucesso de A Fúria do Último Escuteiro e o trabalho de reescrita em O Último Grande Herói, Black recebe em 1996 uns astronómicos quatro milhões de dólares pelo argumento de A Profissional. Estes títulos reflectem já alguma da subversão de género que iremos encontrar mais à frente na sua carreira, mas o fiasco comercial do filme de Renny Harlin fez com que Shane Black desaparecesse de cena por alguns anos.
Em 2005 tem um regresso em grande com Kiss Kiss Bang Bang, que escreve e realiza. Embora não tenha sido um êxito comercial, a mistura de mistério policial e comédia negra conquistou a crítica e é um daqueles segredos mal guardados que delicia quem tem oportunidade de o ver. É também um título importante na recuperação da imagem de Robert Downey, Jr. que, anos mais tarde, resultaria na colaboração com o realizador em Homem de Ferro 3, tendo tido Downey, Jr. um papel importante na escolha de Black para o projecto. Kiss Kiss Bang Bang é um cocktail temático e estilístico que reflecte as sensibilidades e interesses do seu autor. É um ótimo buddy cop movie fazendo uma parelha improvável entre Downey Jr. e um Val Kilmer hilariante que funciona como uma experiência metafísica com um mistério no centro que utiliza clichés, tanto do género policial, como do film-noir, para os subverter, comentando e lançando farpas à fábrica dos sonhos que é Hollywood e a relação desta indústria com a cidade de Los Angeles.
Bons Rapazes, The Nice Guys no original, é o regresso de Shane Black, depois da aventura com O Homem de Ferro, ao seu universo. Situando, desta vez, a narrativa em 1977 emparelha Ryan Gosling, como Holland March, um detective privado de segunda linha, com Russell Crowe, no papel de Jackson Healy, um rufia para aluguer, na pista de um desaparecimento que pode estar relacionado com um acidente que vitimou uma estrela de filmes pornográficos. A cidade de Los Angeles volta também a ser pano de fundo e é, com todas as suas referências temporais, perene smog incluído, uma personagem importante do filme. Logo na cena de abertura Black faz uma declaração de intenções estabelecendo o tom de policial pulp que enquadra a trama e desenha o mistério digno de um filme noir de terceira que serve como MacGuffin que esconde uma conspiração que envolve o gabinete do procurador geral, a indústria automóvel, preocupações ambientais, e o cinema, se bem que na sua variante para adultos, como meio poderoso de comunicação e educação. Se há um problema com o argumento co-escrito por Shane Black com Anthony Bagarozzi é que este está “escrito demais”. A trama é complicada, como devia ser, mas pouco envolvente, ao contrário do pretendido. Possivelmente a sua irrelevância não é acidental mas o resultado é algo alienador.
Mas no lado positivo, o que funciona em Bons Rapazes, é a química entre os seus protagonistas principais, bem como o humor decorrente da sua interação. Russell Crowe, pouco visto em comédias, é o lado “sério” da dupla. Composto, confiante e violento quando é preciso, é o balanço necessário à interpretação mais abertamente cómica de Ryan Gosling que, apesar de alguns papéis mais humorados, tem aqui momentos de fisicalidade cómica hilariante, revelando timing e instintos humorísticos perfeitos para a personagem. Estes não são homens simpáticos ou relacionáveis mas a sátira permite-nos apreciar o tempo que passamos com eles. Há um passado que enquadra as suas personalidades mas Black não está muito preocupado com isso. A flutuação das aptidões investigavas (ou falta delas) de March frusta as nossas expectativas e o nosso entendimento da personagem que se vê auxiliado em certas ocasiões pela sua filha de 13 anos, a revelação Angourie Rice. A introdução da sua personagem, Holly, é uns dos trunfos de Black que, suportado pela interpretação segura de Rice, permite não só alguns gags que a confrontam com um universo mais adulto que lhe deveria ser vedado, como ancora alguns dos temas mais interessantes explorados pelo argumento como a perda da inocência, remetendo também para o adolescente da cena de abertura, ou os dilemas com que Holly confronta Healy no que respeita à decência e respeito pelo nosso semelhante. O que parece quase contraditório com a violência casual que Black encena com abandono, e com as vítimas colaterais daí resultante.
Por cada elemento, referência ou piscadela de olho que funciona, como o sonho de March ao volante do automóvel ou a reunião de Kim Basinger com Russell Crowe em óbvia homenagem a L.A. Confidential, há uma opção estranha, como a violência gratuita que mencionava, ou uma reviravolta a mais na trama que faz com que pareça, desta vez, que Black não está em perfeito controlo de todos os elementos da sua narrativa. Em última instância este é um filme divertido e com muito para digerir. Acredito que repetidas visualizações recompensarão o espectador. Mas parece também que Shane Black está preso no seu próprio universo e, mesmo com a mudança de atores, é inevitável não encarar Bons Rapazes como um Kiss Kiss Bang Bang Redux. Isto é, quem não conheça aquele filme poderá encontrar elementos originais e subversivos, mas quem o conhece vai ver aqui uma versão algo requentada de elementos que já foram feitos melhor e com mais graça há, praticamente, uma década atrás.
Review overview
Summary
Um divertido regresso de Shane Black ao seu universo que perde alguma da sua frescura por, essencialmente, reciclar o anterior Kiss Kiss Bang Bang.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização