Não é por acaso que, em determinado momento de Birds of Prey: And the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn, encontramos a personagem do título a ver um episódio de Sylvester & Tweety na companhia da jovem Cassandra Cain (Ella Jay Basco). Também o filme realizado por Cathy Yan apresenta a mesma saudável loucura e, em Harley Quinn, uma protagonista capaz de se envolver nos episódios mais delirantes, violentos e cómicos, sem que esses actos pareçam colocar verdadeiramente a sua existência em perigo, quase como que directamente saída de um desenho animado dos Looney Tunes. Esta é perigosa, hilariante e perturbada. É capaz de conter no seu interior um bom fundo, ou melhor, um fundo menos mau, tal como consegue abarcar uma malícia eivada de ingenuidade. Foi alvo de violência, saiu de um envolvimento doentio com Joker, aguentou protagonizar o medíocre Suicide Squad e conserva no seu âmago uma série de traumas que faz questão de salientar em diversos trechos da fita. Essa mescla de vulnerabilidade e invencibilidade, tristeza e alegria, independência e dependência é espelhada com enorme vigor, carisma e apetência por Margot Robbie, com a actriz a atribuir alma e capacidade de despertar empatia a esta criminosa de roupas extravagantes, tez pálida e uma miríade de tatuagens que muito dizem sobre a sua pessoa. O argumento raramente explora com profundidade essa faceta trágica desta jogralesa, nem parece ser a sua intenção, ainda que não seja totalmente descurada. Acima de tudo, o foco está no humor e na acção, com a leveza e a exuberância a dominarem regularmente as atenções.
Um dos pontos fortes de Birds of Prey é exactamente a sua faceta cómica, quase farsesca. Por vezes pensa que é mais engraçado do que realmente é, ou simplesmente imagina que é mais irreverente do que é na realidade. Note-se o uso errático da narração em off, com a informação proporcionada pela protagonista a apresentar em diversas ocasiões um lado redundante ou ansioso por reforçar as características peculiares e escarninas desta figura. No entanto, são pequenos deslizes que raramente se intrometem no excelente timing cómico de quase todos os envolvidos, bem como nos inspirados gags. Note-se como o alter ego de uma anti-heroína rapidamente proporciona algumas situações hilariantes, ou como o modo de dialogar da detective Renee Montoya (Rosie Perez) é satirizado. Essa sátira permite desconstruir alguns lugares-comuns e jogar com os mesmos, um pouco à imagem dos avanços e recuos que o filme apresenta em diversas ocasiões, quase a trazer Deadpool à memória (para nos focarmos em fitas com tons semelhantes), enquanto ficamos diante da formação do grupo do título e da emancipação de Harley Quinn. A sua história de origem é apresentada no início da película, em trechos de animação dotados de exuberância, cores extravagantes e o humor que associamos a esta figura. Diga-se que alguma desta informação inicial é repetida ao longo do filme, com Birds of Prey a denotar uma vontade indómita de triturar o seu conteúdo e mastigá-lo antes de o colocar na goela do espectador.
A espaços fica a ideia de que estamos perante uma obra deveras semelhante à sua personagem principal, ou seja, pronta a exteriorizar uma confiança que oculta uma certa insegurança. Ao emancipar-se de Joker, não só adopta uma hiena como se torna o alvo de uma série de criminosos, sobretudo do magnata Roman Sionis (Ewan McGregor), mais conhecido como Black Mask. Ewan McGregor imprime exuberância a esta figura sádica e perigosa, que tem no letal Victor Zsasz (Chris Messina) um companheiro fiel e obediente. Um diamante valioso, ou, se preferirem, o MacGuffin, leva Harley Quinn a contactar com a meliante Cassandra Cain (Ella Jay Basco) e a cumprir temporariamente ordens do antagonista. No entanto, nem tudo corre como o planeado e aos poucos assistimos à formação da equipa do título, onde constam Harley, Cassandra, Black Canary (Jurnee Smollett-Bell), Huntress (Mary Elizabeth Winstead) e Renee. As dinâmicas entre os membros do grupo são convincentes e permitem que as intérpretes se destaquem e reforcem as especificidades das suas personagens. Estas mulheres distribuem pancada, assumem o protagonismo e a relevância, ao mesmo tempo em que afirmam a sua personalidade, enfrentam os seus receios e lutam contra o patriarcado.
Birds of Prey é um filme de anti-heróis maioritariamente protagonizado, realizado, escrito e produzido por mulheres. É algo de louvar, mas elogiar a fita apenas por isso seria de uma condescendência pouco recomendável. O que é de enaltecer é o que estas conseguiram alcançar na adaptação deste grupo da DC Comics ao grande ecrã. As cenas de pancadaria, muito marcadas por lutas corpo a corpo, são coreografadas com perícia. A cinematografia tem um momento de brilhantismo quando o nevoeiro traz consigo a incerteza e o receio. O elenco principal sobressai, sobretudo Margot Robbie. A banda sonora reforça a exuberância caótica da protagonista e dos episódios que permeiam a narrativa, seja em situações de maior violência ou num momento musical onde a tonalidade vermelha acentua o calor dos sentimentos e a música Diamonds é aproveitada com inspiração. O guarda-roupa sublinha a identidade e as características de cada anti-heroína. Note-se as vestes de tons garridos de Harley Quinn, ou as roupas de cores discretas de Black Canary. A paleta de cores é aproveitada com eficácia para adensar a atmosfera peculiar e alucinada do enredo. E, a juntar a tudo isto, é um filme que dialoga pertinentemente com o nosso tempo, com o empoderamento feminino e a diversidade cultural, ou seja, com assuntos que marcam a nossa sociedade.
Diálogos como o de uma personagem a elogiar a capacidade da interlocutora para combater com calças justas, ou trechos de convívio entre as mulheres, permitem reforçar o lado feminino da obra sem que pareça que Cathy Yan está a embrulhar uma mensagem. Birds of Prey está longe de querer ser um filme-mensagem. Acima de tudo quer divertir e contribuir para que jovens e mulheres tenham referências em filmes do género que até agora parecem ser exclusivas dos homens. Não temos o Super-Homem e o Batman a liderar esta equipa, muito menos o Joker ou Lex Luthor. Do fracasso de Suicide Squad saiu uma Harleen Frances Quinzel que tem em Margot Robbie uma impulsionadora essencial para esta figura trágica assumir as rédeas do seu próprio filme. O título de Birds of Prey menciona o grupo, mas o destaque é esta mulher caótica, faladora, incontida. É a figura-chave de uma obra cinematográfica capaz de dialogar com o nosso tempo, dotada de cenas de acção de encher o olho e de um sentido de humor contagiante.
Review overview
Summary
Uma obra deveras semelhante à sua personagem principal, ou seja, pronta a exteriorizar uma confiança que oculta uma certa insegurança.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização