Decorreu dos dias 29 de Junho a 3 de Julho, na Sala 3 do Cinema S. Jorge, em Lisboa, a segunda edição do AR – Festival de Cinema Argentino.
Organizado pela VAIVEM, associação cinematográfica sediada em Lisboa (Portugal) e Buenos Aires (Argentina) e com uma extensão em Quito (Equador), o evento nasceu, segundo as palavras de Maria João Machado e Susana Santos Rodrigues (duas das três pessoas responsáveis pela VAIVEM – o membro restante é o argentino Francisco Lezama), como contraponto de um outro – a Semana de Cine Português –, que organizamos desde 2013 no MALBA – Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. Levámos, desde o primeiro ano, este evento também ao interior da Argentina (Rosario e Córdoba), e a outras cidades da América Latina: Montevideo, Quito, Bogotá, Cidade do México e Santiago de Chile, acrescentam, rematando de seguida – e se apresentávamos cinema português na Argentina, onde apoiamos a sua estreia comercial, o passo seguinte, que foi trazermos o cinema argentino de autor mais recente para Portugal, surgiu-nos como algo natural. Foi por isso que criámos o AR, que organizamos este ano pela segunda vez e esperamos que durante muitos mais anos. A avaliar pela qualidade da maioria das obras apresentadas, também nós esperamos que isso aconteça.
OS FILMES EM DESTAQUE
Este ano foram projectados 14 filmes – 10 longas e 4 curtas-metragens –, de onde se destaca, desde logo, o papel de relevo dado a fortes personagens femininas, que aparecem muitas vezes e maravilhosamente como protagonistas ou co-protagonistas das obras que nos foram dadas a ver, surgindo inclusivamente em diversos títulos, ora com os seus nomes em destaque, como PAULINA ou PAULA, ou em que elas surgem como o “elemento” mais importante do título, como em LA MUJER DE LOS PERROS, LA NOVIA DE FRANKENSTEIN (Curta) ou MI AMIGA DEL PARQUE.
As melhores impressões sobre os filmes deste certame, que merecem uma olhadela mais atenta das distribuidoras e do público, incidiram-se em:
PAULINA (Ficção, 2015), de Santiago Mitre.
Remake de LA PATOTA (1960) e que nos oferece a história de uma mulher com fortes convicções morais, sociais e políticas, que resolve abandonar a sua promissora carreira de advogada e partir contra a vontade do pai, juiz, para uma terra pequena junto à fronteira com o Paraguai onde pretende ser professora e ensinar os que mais precisam. As coisas não correm tão bem como o esperado – é violada por um grupo de rapazes – mas o seu coração é grande e a sua capacidade de amar e perdoar também. Grande prestação da actriz principal, Dolores Fonzi e de Oscar Martínez, que interpreta o papel de seu pai.
CAMINO A LA PAZ (Ficção, 2015), de Francisco Varone.
Numa altura em que a sociedade global se debate com o extremismo religioso por um lado e a intolerância religiosa por outro, este filme é uma lição de tolerância, colocando valores como a amizade e o respeito pelo outro acima de tudo resto, que é, afinal, o que interessa. Sebastián é um jovem desempregado que resolve começar a utilizar o seu velho e precioso Peugeot 505 como uma espécie de táxi particular e que se vê envolvido numa viagem de centenas de quilómetros para levar Jalil, um idoso muçulmano e rabugento que se tornou cliente habitual, de Buenos Aires a La Paz (Bolívia), onde encontrará o irmão, com quem pretende fazer a sua peregrinação de vida a Meca. Essa viagem acaba por ser uma verdadeira descoberta para ambos.
MI AMIGA DEL PARQUE (Ficção, 2015), de Ana Katz
Liz é uma mulher da classe média argentina, com algum desafogo económico, mas cuja vida, outrora activa, foi abalroada pelo nascimento do seu filho, Nicanor, que transformou os seus dias completamente e lhe trouxe tempos que não sabe muito bem como preencher. Com o seu marido Gustavo longe de casa, a realizar um documentário na neve, costuma passear com o seu recém-nascido num parque frequentado por outras mães. De entre elas, desenvolve uma relação especial com Rosa, que vende pãezinhos para sobreviver e que é alegadamente mãe da bebé Clarisa. Um filme sobre a amizade e a confiança no outro.
EL INCENDIO (Ficção, 2015), de Juan Schnitman
Andar com cem mil dólares em dinheiro vivo já é um motivo de preocupação. Mas quando esse é o dinheiro a ser usado por Lucía e Marcelo para comprar a sua futura casa e a venda da mesma é adiada por 24 horas, as coisas podem complicar-se e envolver um uma série de preocupações extra. El Incendio concentra a sua narrativa precisamente nessas angustiantes 24 horas, nas quais o sentimento, honestidade, a confiança e a relação entre ambos vai ser posta, duramente, à prova.
327 CUADERNOS (Documentário, 2015), de Andrés di Tella
Belíssimo filme sobre a vida de Ricardo Piglia, famoso e importante escritor argentino, vista por ele próprio (enquanto vai discorrendo através de caixas e caixas com o seu diário escrito ao longo de cinco décadas) e captada pela Câmara de Andrés di Tella, que lhe acompanhou o processo durante dois anos. Um retrato humano, ora melancólico e nostálgico, ora bem disposto, mas sobretudo muito bonito, de um dos grandes pensadores argentinos contemporâneos.
NOTAS FINAIS
Destacamos ainda dois filmes que também merecem uma visão mais atenta: LA MUJER DE LOS PERROS (Ficção, 2015), de Laura Citarella, Verónica Llinás, a contemplativa visão de uma mulher dos subúrbios rurais de Buenos Aires, que, embora quase não tenha o que comer, recolhe e dá afecto a todos os cães com necessidade que lhe apareçam no caminho e PAULA (Ficção, 2015) de Eugenio Canevari, jovem realizador argentino que vive actualmente em Barcelona e que esteve presente no Festival para apresentar a sua primeira obra. Uma obra sobre a hipocrisia e os falsos moralismos, que tanto podem existir no interior da Argentina, como em qualquer outro país do mundo, e onde aborda um tema bastante sensível e que ainda é tabu um pouco por todo o globo: o aborto.
Embora o calor e o EURO 2016 tenham, cada um à sua maneira, roubado público à Sala 3 do S. Jorge nos primeiros dias, as pessoas foram aderindo às sessões, já bem mais compostas durante o fim-de-semana. Ganhou o cinema e ganhou quem viu os filmes. Para o ano há mais.
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